Há 60 anos, na noite de 30 de março de 1964, o então presidente João Goulart, deixa o Palácio das Laranjeiras para participar da posse da nova diretoria da Associação dos Sargentos da Marinha, no auditório do Automóvel Clube, na Cinelândia, centro do Rio de Janeiro.
Ao chegar, Jango é recebido por sargentos, marujos e fuzileiros navais em um salão lotado. O presidente sobe ao palco e discursa ao lado do marinheiro de primeira classe ‘Cabo Anselmo’, líder de um recente motim e, naquele momento, um insuspeito informante da CIA e da Marinha.
Três dias antes, Jango havia destituído o ministro da Marinha e anistiado mais de 3,6 mil marinheiros amotinados em protesto contra a prisão de companheiros de farda que tinham organizado comemorações de sua entidade sindical. Para a oficialidade das Forças Armadas, a decisão do presidente da República significou uma grave quebra de disciplina e de hierarquia e impôs uma desmoralização ao comando da Marinha.
Certamente, nenhum dos presentes naquela festividade poderia imaginar que aquela seria a última aparição de João Goulart como presidente da República.
O país vivia um ambiente de crescente tensão e polarização política, além de uma grave crise econômica. No ano anterior, 1963, a inflação anual chegou a 79,9% com crescimento de 1,5% ao ano. Credores internacionais bloquearam créditos e o governo norte-americano despejou recursos nos Estados com forte ação golpista – Minas Gerais, São Paulo e Guanabara.
Numa conjuntura de permanente instabilidade e radicalização, desde a renúncia de Jânio Quadros e a posse de Jango, em 1961, setores à esquerda e à direita travavam uma renhida disputa pela oportunidade de implementar o seu projeto para o Brasil.
À esquerda, a agenda das reformas de base mobilizava uma parte considerável da sociedade e unia um campo político amplo e plural, formado por comunistas, socialistas, nacionalistas, católicos, trabalhistas, sindicalistas, operários, camponeses e militares de baixa patente.
Esses setores defendiam a reforma agrária, urbana, bancária, eleitoral, universitária e fiscal, esta que pretendia regular a remessa de lucros para o exterior. Bandeiras essas reafirmadas por Jango no célebre discurso feito na Central do Brasil, no Rio, durante o comício que reuniu cerca de 200 mil pessoas.
A resposta do conservadorismo ao comício viria seis dias depois com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, quando cerca de 500 mil pessoas caminharam da praça da República até a praça da Sé, com palavras de ordem contra Jango e o comunismo e pedindo a intervenção das Forças Armadas. A marcha foi preparada pelo Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes), uma organização dedicada a conspirar contra o governo de Jango, financiada pelo empresariado brasileiro.
Para os setores de direita, que promoveram a marcha, o objetivo principal nos últimos anos era interromper o avanço de um projeto popular considerado inaceitável pela elite política e econômica do país. E para isso os setores interessados trabalhavam firmemente, com indisfarçável apoio dos Estados Unidos.
A nata do empresariado brasileiro, dirigentes de empresas multinacionais presentes no país, intelectuais, militares, jornalistas e integrantes de associações de classe empresariais se empenhavam em ações de desestabilização do governo e de preparação de um golpe civil-militar derradeiro.
Uma das vozes mais representativas do campo progressista naquele momento – e temidas por esses segmentos conservadores – era Miguel Arraes de Alencar. Eleito pela primeira vez para o governo de Pernambuco, Arraes foi o único – entre os 11 novos governadores eleitos – que representava o campo da esquerda naquele pleito de outubro de 1962.
O resultado da eleição sinalizava que ventos conservadores estavam a soprar, e com força, no país. E Arraes pressentia isso.
No dia 31 de março, dia seguinte ao evento de Jango com os marinheiros no Rio, Arraes conversou por telefone com o presidente. Ouviu dele informações preocupantes que davam conta de problemas crescentes de governabilidade e de tensionamento em Estados como Minas Gerais, governado pelo conspirador Magalhães Pinto.
Àquela altura, a tensão já tomara conta de Brasília. Circulavam rumores pelos corredores do Congresso Nacional de que tropas da IV Divisão de Infantaria, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho, justamente a partir de Minas Gerais, marchavam em direção ao Rio de Janeiro para exigir a renúncia de Jango.
Após a conversa, ciente de que estava em curso uma tentativa de ruptura da legalidade, o socialista distribuiu uma nota oficial aos jornais defendendo a democracia e a legalidade. Passou o dia reunido com assessores e em contato com outras lideranças políticas do campo progressista, numa preparação para o viria.
De interlocutores próximos, Arraes recebeu a sugestão de deixar a capital do Estado e ir para o município de Palmares, na Mata Sul, de onde poderia resistir. O governador recusou a proposta, o que se confirmaria mais tarde um acerto já que tropas do Exército enviadas de Alagoas ocuparam a cidade.
Numa última tentativa de mobilizar setores políticos para resistir, Arraes enviou aos governadores do Nordeste um manifesto pedindo o apoio ao presidente Goulart, porém, sem obter adesão.
Naquela noite, Arraes e sua família não dormiram no Palácio do Campos das Princesas, como de costume.
No dia seguinte, 1º de abril, tanques do Exército já apontavam para a sede do governo pernambucano. Os rumores que na véspera circulavam em Brasília se confirmaram. Um golpe civil-militar já estava em curso no país.
O movimento golpista irrompeu naquela madrugada, sob o comando do general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, sediada em Juiz de Fora (MG). O general se antecipou aos planos do Ipes e rumou com sua tropa na direção do Rio de Janeiro para tentar tomar de assalto o Ministério da Guerra e depor o governo Goulart.
No Recife, estudantes saíram às ruas em passeata para defender a legalidade, mas o movimento foi sufocado pelo Exército. Dois jovens acabaram mortos. Arraes protesta contra o cerco ao palácio, mas o isolamento é mantido por ordem do comandante do IV Exército, Justino Alves Bastos.
No final da manhã, dona Magdalena, esposa de Arraes, deixa o palácio para encontrar os filhos, que já estavam em lugar seguro. À tarde, o almirante Dias Fernandes foi à sede do governo comunicar a deflagração do golpe. Os coronéis João Dutra Castilho, do 14ºRegimento de Infantaria, e Ivan Rui de Andrade Oliveira, do 7º Regimento de Obuses, chegam ao palácio para comunicar que Jango havia sido deposto, que as Forças Armadas haviam assumido o comando do país e que Arraes deveria renunciar.
Arraes reagiu dizendo que os oficiais não tinham autoridade para tirá-lo do cargo e que não renunciaria porque o mandato pertencia ao povo que o havia eleito. Um dos oficiais teria lhe oferecido “garantias” se renunciasse, ao que o governador respondeu: “Não preciso de suas garantias, sou governador de Pernambuco e assumirei o governo do Estado esteja eu onde estiver”. E fechou a porta do palácio diante dos oficiais.
À noite, os militares voltaram para prender Miguel Arraes, um dos poucos que ainda se encontravam no Campo das Princesas. Antes de ser levado, o governador gravou uma mensagem aos pernambucanos para ser distribuída às rádios que, àquela altura, já estavam sob controle das Forças Armadas. A censura alcançava rapidamente os veículos de comunicação.
“Sei que cumpri até agora o meu dever para com o povo pernambucano, sei que estou fiel aos princípios democráticos e à legalidade e à Constituição que jurei cumprir. Deixo de renunciar ou de abandonar o mandato, porque ele está com minha pessoa e me acompanhará enquanto durar o prazo que o povo me concedeu e enquanto me for permitido viver”, disse em sua manifestação.
Arraes foi levado em um Fusca dirigido por um correligionário, acompanhado de militares, e detido no 14º Regimento de Infantaria, em Socorro, em Jaboatão dos Guararapes. No mesmo dia, a Assembleia Legislativa aprovou a vacância do cargo de governador, em uma sessão extraordinária vigiada por militares. Simultaneamente, o prefeito do Recife, Pelópidas Silveira, o primeiro eleito no pais pelo PSB, também é cassado.
Na manhã do dia 2 de abril, num comunicado transmitido pelas rádios, os militares informam que Arraes havia sido transferido para o arquipélago de Fernando de Noronha. Pernambuco tinha um novo governador, Paulo Guerra (Arena).
Durante aquela madrugada, em Brasília, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, convocara uma sessão conjunta secreta do Congresso Nacional, que declarou vaga a presidência da República, mesmo que João Goulart estivesse no país.
Diante dos protestos de paramentares como Tancredo Neves, o senador cortou o som, apagou as luzes do Congresso e consumou o golpe. O deputado Paschoal Ranieri Mazzilli chegou a ocupar interinamente a cadeira da presidência da República que, na prática, já estava sob controle do “Comando Supremo da Revolução”, formado pelos três comandantes das Forças Armadas.
No dia 11 de abril, o Congresso Nacional volta a se reunir para eleger o novo presidente da República, mas os parlamentares da coalizão de esquerda já não estavam lá. Foram cassados de imediato por um Ato Institucional do novo regime, o primeiro de uma série.
Sem oposição o Congresso elege o general Humberto de Alencar Castello Branco em votação nominal e oral. O general era o único candidato.
A partir daí, o país teve cinco generais do Exército na presidência da República e, por um curto período, sob comando de uma junta militar formada pelos ministros das três Forças.
O apagar das luzes da democracia durou intermináveis 21 anos, com uma ditadura civil-militar que para se manter no poder implantou um regime baseado em poderes discricionários, repressão política, controle do fluxo público de informação, e sustentação de um programa de desenvolvimento econômico de corte liberal e excludente.
A máquina da repressão deixou um rastro de sangue com 434 mortes e desaparecimentos, identificados pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), e mais de 20 mil pessoas torturadas durante a ditadura militar, segundo a Human Rights Watch.
Em 1965, o Ato Institucional Nº 2 extingue os partidos políticos, entre eles, o PSB, e institui eleições indiretas para presidente e vice. Até março de 1967, ocorreram mais de 400 cassações de parlamentares, prefeitos, governadores e até mesmo de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), como no caso dos socialistas Evandro Lins e Silva e Hermes Lima, nomes importantes da história do PSB.
Enquanto os militares aprofundavam os instrumentos de repressão, a economia se aqueceu e a inflação caiu, num período limitado de crescimento inédito até então no país.
O chamado “milagre econômico brasileiro”tem uma explicação: o plano dos militares na economia estava baseado no alto subsídio governamental, na diversificação das exportações, na desnacionalização da economia com a entrada crescente de empresas estrangeiras, no controle do reajuste de preços e fixação centralizada dos reajustes de salários.
Depois da momentânea euforia de uma parte da população que conseguiu ter acesso a bens de consumo nunca antes adquiridos, os efeitos do “milagre” seriam sentidos por todos os brasileiros, que pagaram um preço alto.
A população brasileira viveu um processo acentuado de concentração de renda, fruto de uma política salarial restritiva, cujos ganhos de produtividade não eram distribuídos aos trabalhadores.
Devido ao descontrole dos gastos em projetos faraônicos e mesmo de investimentos em infraestrutura pesada como de transporte e telecomunicações, a dívida externa explodiu deixando o país em uma condição extremamente perigosa de vulnerabilidade internacional.
Em 1973, os brasileiros acordaram de vez do sonho produzido pelo regime militar quando a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) reduziu a oferta do produto e o preço internacional quadruplicou. O Brasil precisava importar petróleo, agora, a um custo muito maior. O “milagre” chegava ao fim.