
Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Além de produzir efeitos materiais, objetivos nas vidas de pessoas e sociedades, a política tem uma dimensão simbólica que, não raro, revela de forma ampla e precisa a natureza de uma época, de estruturas determinadas de poder e das mentalidades que as animam.
É nessa perspectiva ampla que se deve lamentar o incêndio que consumiu, a partir do início da noite de ontem, instalações físicas e acervo do Museu Nacional, a mais antiga instituição cientifica do país, no Rio de Janeiro. O que se perdeu? Materialmente, coleções de geologia, paleontologia, botânica, zoologia, antropologia biológica, arqueologia e etnologia, pertencentes a um acervo de aproximadamente 20 milhões de itens, cobrindo séculos de história.
Se considerarmos que a memória das sociedades vive e perdura nos documentos, nos objetos que sobrevivem aos homens e mulheres que os produziram, a nação brasileira acordou hoje acometida de uma amnésia secular, para a qual, dadas as dimensões do incêndio, não se encontrará jamais um remédio adequado.
Por si só, uma tamanha perda de memória é uma tragédia, mas há um efeito infelizmente ainda mais amplo que toma conta de nossas almas como cidadãos: a confirmação de que as estruturas politicamente hegemônicas na política nacional não têm tido o devido cuidado em zelar pelo país e por sua gente. Em eventos como esse, é nossa autoestima a maior vítima política.

Foto: Divulgação/Rafael de Moura
Descaso, portanto, é a palavra por meio da qual se sintetiza a estupefação de escala social, ao se dar conta de que o acervo do Museu Nacional, relevante em termos planetários, já vinha sendo carcomido pelos cupins, pela ausência de recursos para remunerar adequadamente seu pessoal, para tornar seus itens uma potência tecnológica, que permitisse visitar a história nacional, escrevendo capítulos inéditos, contidos justamente no material que se perdeu, ontem, de maneira irremediável.
Perdemos potência e possibilidades, enfim, como nos vem ocorrendo, no contexto de uma crise de longa duração, diante da qual, infelizmente, os poderosos de plantão — destemidos ao desafiar a população e os direitos que esta conquistou em luta de décadas — encontraram como uma única abordagem, “aliviar o país dos custos da civilidade”.
Nesse sentido, a tragédia que alcançou o Museu Nacional é irmã daquela, que vitima os trabalhadores com a desventura associada do desemprego e da precariedade; a educação, a saúde, a previdência social, redesenhadas para servir parcamente aos pobres, cujos passados e futuros não cabem nas contas do rentismo, que reconquistou o País, para os termos de uma forma contemporânea de espoliação colonial.
A nós, que compomos o campo político da esquerda democrática; aos cidadãos contra os quais se dirigem políticas cujos resultados são o abandono e o depauperamento, não cabe apenas lamentar. É preciso atuar politicamente, lutar por outra qualidade de futuro e sociedade, que compreendam mais do que essa modernidade proposta por nossos atuais governantes, que é não mais do que uma variante da capatazia, contra a qual os segmentos populares têm se debatido com maior ou menor êxito, ao longo de toda sua história.
Vivemos um momento crucial de nosso destino comum e, para estar à altura dos desafios que nos alcançam, é necessário saber ler os elementos simbólicos no cenário político. Especialmente por isso, o incêndio do Museu Nacional não pode ser apenas uma manchete, que se apaga da memória, no curso de uns poucos dias.
Carlos Siqueira
Presidente nacional do Partido Socialista Brasileiro – PSB