TRIBUTO A SHIMON PERES
Sobre a história e seres humanos que se tornam essenciais
Carlos Siqueira
Presidente Nacional do Partido Socialista Brasileiro
Poucos fenômenos são tão centrais à construção da história contemporânea quanto a implantação de um Estado judeu na palestina. Muito embora tenha havido um antissemitismo disseminado ao longo de toda a idade média, o que conhecemos como tal tem origem em meados do século XIX e se relaciona de forma indissociável à emergência das reivindicações coloniais de potências europeias emergentes, que colocavam em cheque o poderio britânico sobre a África e Ásia. O enervamento mais complexo dessas tensões capitalistas viria a redundar no nacional socialismo alemão, que foi sobretudo uma revolta contra a civilização.
Esse quadro geral permite compreender o contexto em que se formaram as lideranças do futuro Estado de Israel, dentre as quais, dado as circunstâncias de hoje, destacamos Shimon Peres. Nascido em 1923 na cidade de Wiszniew, à época Polônia, migrou para o território em que viria a ser criar o Estado hebreu, na oportunidade um protetorado britânico.
Desde muito cedo um arguto observador, Peres destaca sobre sua imigração aspectos sensoriais muito interessantes. Desde a diferença de luminosidade entre sua Polônia de partida e a palestina de destino; as cores, de coisas e pessoas; o estado de ânimo de comunidades que sabiam ter tomado a história nas mãos, para então restabelecer seus direitos de cidadania, sobre uma terra que historicamente lhes pertencia.
Peres se ocupou da agricultura inicialmente, residente e fundador que foi de um kibbutz e desde então compreendeu de forma clara o significado de se ter um território, uma vez que essa atividade é estritamente territorial. Engajou-se, como todos os demais, em um corpo armado que defendia possessões das comunidades judaicas na palestina, antes que se institucionalizasse o Estado de Israel. Esse engajamento, vinculado de forma imediata e prática ao modo de viver do povo judeu que retornara à terra de origem, o levou à política e, nela, ao Partido Trabalhista. Vale lembrar, quanto a esse aspecto, que tal Partido se faz presente na Internacional Socialista, da qual Shimon Peres foi Vice-Presidente.
Esses elementos basais de personalidade ajudam a compreender a estatura da liderança exercida por Shimon Peres e sua projeção internacional. Foi desde sempre um homem da paz, cuja formação religiosa de infância se transformou em uma laicidade militante, que o levou para a vida civil, para a política, na forma de uma firmeza de propósitos, que não conhecia as pequenas flexões que muitos fazem, em favor das soluções mais imediatas e simples.
A aversão aos consensos, às soluções mornas e sem potência transformadora, em particular, chamaram a atenção de Ben Gurion para aquela jovem liderança. Homem de paz, teve confiada a si a missão de armar o Estado de Israel, o que fez com maestria em meio a uma conjuntura internacional complexa, que determinava que a luta pela sobrevivência do Estado hebreu se subordinasse às conveniências das nações hegemônicas, particularmente a Inglaterra, que defendia seus interesses estratégicos junto ao mundo árabe.
Foi à França, portanto, que Peres recorreu para abastecer inicialmente Israel de material bélico pesado, passo que permitiria transformar o pequeno território em uma potência militar de primeira grandeza em futuro não muito distante dos acordos firmados com os franceses. Na concepção de paz desenvolvida por Peres essa condição – a de potência militar – não implica uma contradição. Para ele conquistar um efetivo poder de dissuasão para Israel era elemento essencial tanto a sua sobrevivência, quanto à pacificação do Oriente Médio.
Não foi um acaso, portanto, que esse homem de paz tenha saudado com entusiasmo a elevação de Israel à condição de potência nuclear. O poder de dissuasão que tal condição propicia passou a fazer parte, desde então, de todo o cálculo político regional e se impôs como um freio, à beligerância dos estados árabes em direção a Israel.
Esse contexto e o acerto estratégico da decisão de desenvolver tecnologia nuclear ficaram particularmente evidentes na Guerra do Yom Kippur, em que o General Presidente do Egito, Muhammad Anwar Al Sadat, preferiu buscar um acordo de paz, a dar continuidade a uma ofensiva que não poderia sustentar, devido a sua inferioridade do ponto de vista da tecnologia militar.
O hábil negociador da paz foi além, contudo, e protagonizou com Yasser Arafat um genuíno esforço para construir um espaço de convivência pacífica entre judeus e árabes. Chegaram muito perto de alcançá-lo, mas faltou a Arafat a condição ou disposição de realizar um esforço de construção interno, junto a seus concidadãos, no qual ficassem claras as muitas vantagens da paz, sobre as escaramuças de uma guerrilha que flerta, de tempos em tempos, com ações terroristas contra a população civil de Israel, na ampla impossibilidade de um enfrentamento militar, dado a assimetria de meios que se consolidou com o passar do tempo.
Ainda que o esforço empreendido não tenha produzido todos os frutos que dele se esperava, levou à assinatura do Acordo de Paz de Oslo em setembro de 1993. Em função da subscrição do acordo, Shimon Peres recebeu o Nobel da Paz, juntamente com Yitzhak Rabin e Yasser Arafat.
Já a título de conclusão e como tributo a Shimon Peres impõe-se pensá-lo não como passado e sim na qualidade de exemplo que orienta um futuro por construir. Sua estatura política e intelectual faz pensar sobre a missão das lideranças políticas, na construção de um País. Note-se, desde já, que o caso de Israel é arquetípico, por ter sido um projeto amplamente consciente e documentado, que se iniciou do zero.
Que um País já exista, pouco muda cenário, quando se trata de transformá-lo em sentidos radicalmente novos. As qualidades exigidas para que se o faça são semelhantes à condição em que se parte do zero. É justamente aqui que Shimon Peres se faz maior, como exemplo.
Nas negociações políticas e geopolíticas, as concessões jamais foram para ele “favores” à construção do consenso paralisante, que dá ao que está envelhecido e decrépito poder, visto não ter mais a potência vital de se transformar em novidade. Ele, quando teve quer fazê-lo, bálsamos que curam as feridas inevitáveis da vitória irrefutável de uma determinada hegemonia.
Essa qualidade de vitória só pode ser construída por homens dispostos a perder as disputas que conduzem, para que o futuro continue a ter chance de ser diferente do presente. Entre muitos homens importantes, por se disporem recorrentemente ao longo de sua vida a tal sacrifício, Shimon Peres alcançou como sobras o que sempre valorizou em seus camaradas e oponentes de efetivo valor: a qualidade de ser essencial à história que lhes foi dado viver. Sabia, desde sempre, que é mais difícil atribuir à vida sentidos que de fato valham a pena, do que vivê-la ou sobreviver.
CRONOLOGIA
Veja as datas mais marcantes de Peres:
2.ago.1923
Nasce na Polônia
1934
Emigra com a família para a Palestina, então administrada pelo Reino Unido
1945
Casa-se com Sonya Gelma
1953
Torna-se o mais jovem diretor-geral do Ministério da Defesa de Israel até hoje
1959
É eleito para o Knesset, o Parlamento israelense
1974
Torna-se ministro da Defesa no governo de Yitzhak Rabin
1984
Torna-se primeiro-ministro de Israel, posto que exerce até 1986
1994
Recebe o Nobel da Paz junto a Yitzhak Rabin e Yasser Arafat
1995
Após o assassinato de Rabin, volta a assumir, durante oito meses, o governo de Israel
2007
Assume a Presidência de Israel, cargo de caráter cerimonial que ocupa até 2014
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