Autor: Alfredo Sirkis
Ambientalista, político, jornalista e escritor
O muito celebrado Acordo de Paris ainda ficou longe de colocar a economia
global numa trajetória abaixo de 2 graus (de aumento da temperatura média
do planeta nesse século), muito menos do horizonte de 1.5 graus nele
definido. O somatório dos Compromissos Nacionalmente Determinados (sigla
em inglês: NDC) dos países signatários ainda fica bem longe dessa primeira
meta. Viessem a ser todos eles rigorosamente cumpridos, até 2030, ainda
sobrariam, na atmosfera, naquele ano, nada menos de 12 Gt (gigatoneladas:
bilhões de toneladas) de gases efeito estufa(GEE) emitidos a mais do que o
compatível com uma trajetória de 2 graus. O somatório dos NDC ainda aponta
para um aquecimento entre 2.8 e 3.4 graus.
Essa é ainda uma projeção francamente otimista pois não incorpora os
chamados feedbacks, certos processos exponenciais, retro-alimentadores do
aquecimento global: O primeiro é a liberação de gás metano armazenado sob
as geleiras do Ártico, oceanos e no permafrost siberiano. O gás metano (CH4) é
21 vezes mais ativo para efeito estufa que o C02 mas enquanto esse
permanece séculos na atmosfera o metano de dissipa em décadas. Os
cientistas ainda não têm total clareza sobre as implicações deste feedback
desdobradas no tempo. Mas a preocupação é grande.
O segundo grande feedback é a perda da capacidade de absorção de carbono
pelos seus dois grandes sumidouros naturais, os oceanos e as florestas
tropicais. Ambos estão perdendo, gradualmente, essa capacidade. Os oceanos
pela sua acidificação e as florestas tropicais pelas secas que as atingem. Nas
duas grandes secas sofridas pela Amazônia, em 2005 e 2010, quase um lGt foi
emitido pela floresta naqueles anos mas não contabilizado no inventário de
emissões de GEE brasileiro por ser considerado “fenômeno natural”.
Ou seja, o futuro climático é assustador mesmo na hipótese otimista de se
conseguir cumprir, a risca, o Acordo de Paris e suas NDC. Por outro lado, não
deixa de ser bastante plausível a hipótese de que certos países não cumprirão
seus NDC, que são “compromissos voluntários”. É o que pretende,
atualmente, Donald Trump a frente do governo do segundo maior país
emissor.
Pior ainda: cada vez mais cientistas consideram que a meta de 2 graus,
mesmo cumprida, não deteria o derretimento acelerado das geleiras do Ártico
e da Groenlândia, que pode dar-se antes de 2040, e a subsequente elevação
do nível dos oceanos de forma a ameaçar milhares de cidades litorâneas. Foi
por essa razão que Conferência de Paris, pressionada pelos países insularessob
risco de pura e simplesmente desaparecerem do mapa, mesmo com 2
graus– adotou uma referência ao horizonte de 1.5 graus embora, de uma
forma geral, isso fosse tecnicamente considerado, já então, algo praticamente
inviável, a no atual estágio do conhecimento humano e sem recurso a técnicas
controversas de geoengenharia. Os cientistas do Painel lntergovernamental
para as Mudanças Climáticas (IPCC) devem apresentar, em 2018, um estúdio
mais conclusivo do que seria necessário fazer para chegar nesse patamar.
A temperatura média do planeta, depois de ter permanecido estável durante
milhares de anos, já aumentou em 1.1 graus, desde o início da era industrial. A
concentração de gases-estufa em poucos anos ultrapassará aquela compatível
com 1.5 graus e, na altura de 2030-35, aquela relacionada a 2 graus. Essa
elevação de temperatura não é imediata, demorará décadas mas poderá
ocorrer ainda no tempo de vida de nossos netos e bisnetos. Em geral
relaciona-se ao limite 450 ppm (partes por milhão) uma chance de mais de
50% dos nossos netos viverem num mundo aquém do limite dos 2 graus. No
início da era industrial essa concentração era de 280 ppm (partes por milhão) e
atualmente ela já ultrapassou os 407 ppm.
Há outros estudos que afirmam que, num prazo mais longo, a humanidade
teria que fazer retroceder essa concentração de volta aos para 350 ppm para
livrar-se dos chamados feedbacks de longo prazo e assegurar a sobrevivência
da espécie humana sobre o planeta. Ninguém hoje tem ideia de como
promover tamanho nível de emissões negativas que absorva toda essa
quantidade de gases-estufa. Talvez a humanidade, no século 22, torne-se
capaz disso. O dever da atual geração tentar manter essa concentração abaixo
das 450 ppm e a temperatura abaixo de 2 graus buscando aproximar-se de 1,5.
É um desafio dificílimo. No momento em que foi assinado o Acordo de Paris
isso efemeramente pareceu um pouco menos distante que antes, O Acordo
prevê ciclos de rev1sao quinquenais para levar os governos a se
comprometerem com NDC mais (não menos!) ambiciosos.
A inesperada eleição de Donald Trump trouxe uma dificuldade adicional de
dimensões consideráveis: o segundo maior emissor passou a ser governando
por um presidente e uma maioria parlamentar que simplesmente negam que
exista o aquecimento global provocado pela emissão de carbono e outros
gases feito estufa proveniente da queima de combustíveis fósseis e de outras
atividades humanas.
Neste momento ainda não sabemos de que maneira a administração Trump
irá conduzir diplomaticamente seu posicionamento. Há duas facções em
dissenso, na Casa Branca, em torno de posições taticamente distintas mas
igualmente reacionárias. Um grupo liderado pelo assessor político e ideólogo
da extrema-direita Steve Bannon e pelo atual presidente-liquidante da agencia
federal de proteção ambiental {EPA), Scott Pruitt, defende que os EUA devam
pura e simplesmente se retirar do Acordo de Paris. Porque o caminho para
tanto é mais complicado e demoraria três anos, seria mais fácil sair de vez da
Convenção do Clima, assinada na Rio 92 que implicaria automaticamente na
retirada do Acordo de Paris. Isso seria mais rápido, demoraria apenas um ano.
É a solução curta e grossa.
Esse grupo enfrenta a oposição da filha de Trump, lvanka, do seu marido,
Jared Kushner e do secretário de estado (e ex-presidente da Exxon Mobil) Rex
Tillerson, apoiados pela maioria das grandes empresas de energia fóssil.
Sustentam que os EUA devem permanecer no Acordo de Paris mas rever para
menos seu NDC de forma a incorporar as consequências do desmantelamento
de toda a regulamentação baixada pela EPA durante a administração Obama,
impondo fortes limites de emissões para às termoelétricas a carvão e a
diversas outras indústrias, inclusive a automobilística.
Bannon, Pruitt e seus partidários nos lobbies e think tanks negacionistas
climáticos se opõem a essa proposta. Cobram o compromisso de campanha:
Trump anunciara várias vezes sua intenção de sair do Acordo de Paris. Eles
lembram que o Acordo só contempla revisões de NDC no sentido de menos
emissões e não de mais. Advertem que tal decisão deixaria a administração
Trump exposta a uma chuva de ações judiciais por parte de ONGs
ambientalistas e de governos estaduais democratas numa reação similar ao
que aconteceu com o famosos decreto anti-imigração de muçulmanos de
alguns países, baixado logo nos primeiros dias e logo bloqueado na justiça.
A administração Trump esta dividida entre essas duas maneiras de promover
o retrocesso climático: uma atitude clara, radical ou outra mais dissimulada,
preocupada com o contexto internacional e com eventuais danos à
competitividade das empresas norte-americanas em suas exportações.
Bannon e Pruitt têm razão quando observam que o Acordo de Paris não prevê
recuos nas NDC e que não caberia apresentar um NDC revisado para baixo. Os
NDC, à luz do direito internacional, são a compromissos voluntários. Ao
contrário do Protocolo de Quioto, de 1997, no qual os países desenvolvidos do
chamado Anexo I estavam, em tese, sujeitos a sanções pelo descumprimento
de metas assumidas, o Acordo de Paris não estipula penalidades nem possui a
força de um tratado internacional. Também é bom lembrar que certos países
como o Canadá {na época do governo conservador de Stephan Harper)
descumpriram flagrantemente seus compromissos de Quioto e nem por isso
sofreram quaisquer sanções.
O Acordo de Paris, acertadamente, adotou um outro caminho reconhecendo
implicitamente a impotência do sistema da ONU para deliberar sobre sanções
pelo não-cumprimento e de sancionar para além da constatação, do anúncio
público e do vexame. Foi uma decisão sábia, obrigações sujeitas a sanções,
seriam politicamente inviáveis num organismo como a UNFCCC que toma
decisões por consenso. Os dois únicos organismos que podem determinar
sanções são o Conselho de Segurança da ONU e a OMC {Organização Mundial
de Comércio). Há um bom tempo alguns propugnam que o Conselho de
Segurança trate das ameaças climáticas. Isso vem suscitando resistências –
inclusive do Brasil!-mas mesmo que viesse a ocorrer, no futuro, sanções pelo
não cumprimento de compromissos climáticos ainda estaria sujeita ao poder
de veto dos cinco membros permanentes, EUA, Rússia, China, Reino Unido e
França.
Nesse contexto, a administração Trump pode, de fato, permanecer na
UNFCCC e no Acordo de Paris e ficar jogando a cartada da obstrução e da
procrastinação. Isso, atualmente, vem sendo apanágio de um grupo
heteróclito de governos definido como the like minded {os que pensam
parecido) Arábia Saudita e outros países da Liga Árabe, produtores de petróleo
ou por eles influenciados, mais o grupo dos “bolivarianos” onde se destaca a
Venezuela. A Arábia Saudita, que na Conferência de Copenhagen, em 2009,
adotara uma posição agressivamente negacionista chegando a se envolver em
provocações para questionar a integridade científica do IPCC, vem,
gradualmente, evoluindo e começa a programar uma transição energética com
um programa muito ambicioso de expansão da energia solar. Se os EUA afinal
adotarem como sua nova política o discurso de Scott Pruitt ficarão isolados em
companhia do governo de Nicolas Maduro na vanguarda do atraso climático.
Não é viável que implementar isso com a sua atual equipe negociadora na
UNFCCC, remanescente do governo Obama, liderada por Trigg Talley um democrata
-casado com uma brasileira– que certamente nesse momento
estará na alça de mira de Bannon e Pruitt. Internamente, no entanto, o jogo já
está perfeitamente claro. Por decreto presidencial já foram desmantelados os
limites de emissões que Trump denominou “guerra ao carvão”; foi autorizada
a construção do oleoduto de Keystone que importará do Canadá um tipo de
petróleo emissor particularmente intenso de C02 (tar sands); foi dizimado o
conselho cientifico da EPA; foram retirados do ar todos os websites federais
que tratavam de Clima e foram tomadas dezenas de decisões que revertem ou
enfraquecem medidas de controle de variados tipos de poluentes locais.
Segundo diversos observadores tudo isso já sinaliza o descumprimento da
NDC norte-americana, cuja meta é uma modesta redução de entre 26% e 28%
das emissões, em 2025,ano base 2005. O Brasil, que utiliza o mesmo ano base,
apresentou no seu NDC meta de 37%, em 2025 e 43%, em 2030. A União
Europeia, de 40%, em 2030.
Dominós
As consequências negativas do posicionamento da administração Trump nessa
questão tão vital para o futuro da humanidade, dar-se-ão para além de um
simples forfait do segundo maior emissor ao compromisso internacional que
assumiu em 2015. Tão ou mais grave é sua influência negativa sobre outros
governos de países grandes emissores. O discurso negacionista de Trump tem
um efeito desinibidor. A Rússia, por exemplo, vem sendo problemática nas
negociações climáticas. Desde o início do processo sua política vem sendo a de
tentar fazer valer ao máximo a forte redução de emissões que ocorreu, no
início dos anos 90, na transição da URSS para a Federação Russa, na brutal
recessão econômica ocorrida durante o governo de Boris leltsin. Sua ambição é
transformar aquela queda, brutal mas meramente recessiva -e relacionada
com duas economias (a da URSS e a da Rússia) que não podem ser exatamente
comparadas– numa profusão de créditos de carbono que a habilitem a poder
emitir mais, no futuro. O NDC russo é bem modesto: 35% em relação a 1990, o
que essencialmente já foi atingido (e ultrapassado) por força daquela recessão
dos anos 90 e da atual.
Não obstante, até pouco tempo, Vladimir Putin vinha jogando o jogo no
âmbito da narrativa. Putin “entrou no clima” em Paris. Seu discurso na COP 21
foi considerado “forte”. Não mais. Recentemente, Putin deu uma declaração
estranha na qual parece se acercar do negacionismo climático de Trump e
colocar em dúvida a existência de um aquecimento global provocado pela
“ação do homem” atribuindo-o “causas naturais”. Depois, não se ouviu mais
dele sobre o tema. A dúvida ficou no ar. Outro governo susceptível de sofrer
uma influencia negativa de Trump é o da Índia, cujo primeiro-ministro,
Nerendra Modi, vem muito relutante e modestamente anunciando metas
ambíguas e insuficientes para que já é o quarto maior emissor. O NDC da Índia:
–um dos mais longos e prolixos, com 38 páginas– define um compromisso de
redução de 33% a 35% da intensidade de carbono por ponto percentual do PIB,
até 2030, ano base 2005. Ainda não ficou claro se, de fato, Trump influenciará
a posição da Índia mas a preocupação está no ar.
Diplomaticamente, o vazio criado pelo recuo de Trump em relação ao Obama
na questão climática deixa tende a ser preenchido, pelo menos no âmbito
retórico, pela China, União Europeia e Brasil. São atores que reconhecem de
forma inequívoca as dimensões do desafio das mudanças climáticas e a
necessidade de enfrenta-las reduzindo fortemente emissões e se adaptando.
Esse posicionamento, no entanto, não está isento de ambiguidades e de
problemas em relação aos quais a nova postura norte-americana, seja qual for
a variante tática adotada, exerce uma influência muito negativa, estimulando
os setores reacionários em todos os governos.
A China, o primeiro maior emissor, responsável por 15% das emissões globais,
possui um NDC que não contempla, até 2030, o corte de emissões no
agregado. Seu compromisso é da redução de 60% a 65% na sua intensidade de
carbono por ponto percentual do PIB, até 2030, ano base 2005. Assume
também o compromisso de iniciar reduções, no agregado, a partir de um
“pico” de emissões que dar-se-ia, ao mais tardar, em 2030.
• De fato, por diversos fatores que incluem uma contração do nível de
crescimento do seu PIB e uma forte redução no seu consumo de carvão –
fundamentalmente para fazer frente a uma terrível poluição atmosférica nas
cidades– a China, nos últimos dois, anos já reduziu, ligeiramente, suas
emissões no agregado. Essa queda somada à dos Estados Unidos, nos últimos
anos do governo Obama, permitiu um feito inédito: uma pequena redução
global de emissões globais no setor de energia.
A União Europeia(UE), por sua parte, já vinha reduzindo suas emissões, no
agregado, desde o Acordo de Quieto mas tem problemas em relação a alguns
de seus países mais atrasados como a Polônia, muito dependente do carvão e
agora com um governo de extrema-direita que também adere ao
negacionismo climático (mas deve sediar a importante Conferência do Clima
COP 24). A isso se soma o Brexit, a retirada do Reino Unido da UE, cujos
detalhes começam a ser negociados em breve. Embora o governo conservador
de Thereza May não tenha sinalizado, ainda, nenhuma mudança em relação a
compromissos climáticos eles parecem menos seguros porque o Brexit pode
resultar num eventual abandono de certas normas e padrões ambientais e
climáticos europeus que eventualmente o Reino Unido considere
inconvenientes. Ser a negociações não forem bem sucedidas e levarem a um
divórcio litigioso a tendência do Reino Unido é praticar o dumping tributário e
ambiental para tentar atrair capitais transformando-se num grande paraíso
fiscal.
O Brasil, por sua parte, assumiu compromissos bastante avançados na sua
NDC – uma das poucas que já estaria alinhada com uma trajetória de 2 graus–
ao comprometer-se com reduções, no agregado, de 37% até 2025 e 43%, até
2030, ano base 2005. É a única grande economia, em desenvolvimento, a fazêlo e que conseguiu,
no período entre 2005 e 2012, promover o maior corte de emissões no agregado de qualquer
país pelo fato de ter reduzido o
desmatamento, na Amazônia, de 27 mil km2 para menos de 5 mil km2.
Depois disso, no entanto, o desmatamento voltou a subir chegando a quase 8
mil km2, em 2016. Em 2015 e 2016, apesar de uma recessão brutal, as
emissões brasileiras subiram 3% por causa desse repique do desmatamento.
Nesse contexto de fragilidade, a influência negativa dos EUA sob Trump é
certamente preocupante. Ela pode servir de álibi ou justificativa geopolítica
para as forças que, internamente aos países ou blocos de países, procuram
dificultar novos avanços, quando não promover retrocessos, tanto em relação
a suas políticas internas, atinentes à transição para economias de baixo
carbono, quanto no seu posicionamento diplomático em organismos
multilaterais como a UNFCCC, o G 7 ou o G 20. Como estes se regem pelo
consenso, o denominador comum acaba sendo aquela posição mais atrasada.
O governo Trump já conseguiu impor retrocesso ao G 7 ao suprimir qualquer
menção às mudanças climáticas na recente reunião presidida pela Alemanha
que, em tese, seria uma oportunidade para avançar a agenda climática no
campo econômico.
No complexo universo da UNFCCC onde a geopolítica sempre jogou um peso
preponderante em detrimento da solidariedade climática, salvo em alguns
momentos de avanço incrementai, com foi a Conferência de Paris, essa
capacidade de obstrução da administração Trump deverá marcar sua presença.
Isso certamente se fará sentir nas próximas COP. Não cabe dúvida que o processo da UNFCCC,
tão dependente de consenso, será duramente afetado, pelo menos nos próximos quatro anos
que seriam cruciais para um impulso de
descarbonização drástica das economias do século 21 que já era bastante
difícil na situação anterior. Visto sob esse ângulo, a situação assume contornos
bastante trágicos.
Mas continua sendo “a economia, estúpido!”
Antes de consideramos liquidada a fatura de qualquer avanço climático, nos
próximos quatro anos, pelo menos, por causa do retrocesso nos EUA, seria
conveniente analisar certos desdobramentos recentes que não estão
diretamente vinculados ao processo diplomático multilateral entre governos
nacionais o qual se dá nas COP da UNFCCC e nos processos multilaterais acima
mencionados.
Não se pode ainda afirmar com segurança que o mundo já tenha atingido seu
“pico” de emissões mas é certo que algo de interessante -e até certo ponto
inesperado– ocorreu: o PIB mundial em 2015 e 2016 cresceu perto de 3%, ao
ano, mas as emissões, do setor de energia, pela primeira vez, não
acompanharam esse crescimento. Aparentemente –os números ainda não são
completos e incontestes– elas se mantiveram esteáveis ou mesmo tiveram
uma pequena redução. Ou seja, pela primeira vez, houve uma diferenciação
entre a curva do PIB global e a das emissões globais.
Já houveram anos anteriores de redução de emissões, mas corresponderam a
períodos recessivos seguidos de aumento, assim que o crescimento global
retornou. Dessa vez parece diferente, uma estagnação das emissões num
momento de crescimento do PIB global que parece decorrer sobretudo da
redução da queima de carvão energético nos EUA e na China. Nos EUA, por
conta de sua substituição pelo gás de felhelho e, na China, por um robusto
investimento em energias limpas, como a eólica e o solar, e pelo fechamento
de usinas a carvão mais velhas de altas emissões, tanto de poluentes locais
como de C02.
Ainda não sabemos se, de fato, estamos diante de uma tendência a ser
sustentada nos próximos anos mas certamente estamos diante de um fato real
e que não foi “deliberado” no processo da UNFCCC ou concertado em reuniões
do G 7 ou G 20. Ele simplesmente aconteceu na economia real e se relaciona a
determinadas mudanças tecnológicas e econômicas que resultaram numa
redução dramática dos preços das energias eólica e solar e do gás tornando-os
competitivos com o carvão. Também houve, como vimos, um componente de
“comando e controle”: o fechamento de velhas usinas a carvão, na China,
primordialmente para tentar melhorar a qualidade do ar em suas grandes
cidades. Também ressalta, secundariamente, uma maior eficiência energética
dos novos veículos que estão sendo fabricados, com padrões de maior
eficiência energética e uma incipiente mais crescente presença de veículos
elétricos e híbridos que, num futuro não muito distante, irão entrar nessa
equação.
Existe, inegavelmente, um viés econômico em curso apontando na direção da
descarbonização. A redução de 3% nas emissões de GEE dos EUA, no último
ano do governo Obama, junto com uma ligeira queda das emissões de energia
na China, da ordem de 1%, explicam diretamente o que ocorreu nesses dois
anos. Mas subsistirá? Uma das principais promessas de campanha de Donald
Trump foi a de reverter a regulamentação que denominou (la guerra contra o
carvão”. Seu decreto cancelando os atos da EPA nesse sentido foi rapidamente
assinado, com pompa e circunstância, e Trump cercado por eufóricos
representantes de mineradores, sindicatos carvoeiros e donos de térmicas a
carvão. No entanto, a maioria dos observadores considera que os seus
esforços para reviver o setor enfrentarão grandes obstáculos por contrariarem
fortes tendências econômicas.
O uso do carvão para geração elétrica não sofre apenas a concorrência da
geração eólica e solar. A maior causa de sua decadência está no barateamento
drástico da exploração do gás de felhelho. A prometida volta ao rei-carvão dos
séculos 19 e 20 parece tão improvável quanto a da Maria Fumaça ou do Ford
Bigode. Ainda que Trump consiga uma improvável maioria parlamentar para
subsidiar o carvão como complemento de sua ação executiva contrária aos
limites de emissões da EPA, esse estímulo não parece capaz de promover a
ressurreição de um setor condenado por sua obsolescência.
Boa parte da própria indústria do carvão reconhece isso e aposta, cada vez
mais, no chamado CCS, a captura e o “sequestro” do C02 emitido pelas usinas
a carvão. Gostariam de ter subsídios da administração Trump para tanto. Mas
por que eles iriam fazê-lo se pretendem, como pontifica Scott Pruitt, que as
emissões de C02 dos combustíveis fósseis nada tem a ver com as mudanças
climáticas? Como então justificar para os outros republicanos defensores de
cortes nos gastos públicos, investimentos para desenvolver tecnologias de
sequestro e captura de algo que consideram nada tem a ver com o
aquecimento global, essa “invenção dos chineses” que eles atribuem a um
“fenômeno natural” ou simplesmente negam a existência? Aqui o governo
Trump se enrola com seu próprio discurso e consegue ser mais reacionário que
a própria indústria que pretende proteger da implacável evolução da economia
do século XXI.
A posição negacionista de Bannon, Pruitt e que foi defendida por Trump na
campanha, consegue entrar em contradição com boa parte da própria
indústria do carvão, de olho em sua moribunda competitividade, e que vê
outros países carvoeiros apostarem nas tecnologias de CCS. Boa parte das
empresas do setor e quase todas as de petróleo, já anunciaram que são
contrarias a abandonar o Acordo de Paris e se alinham mais com a posição
defendida por lvanka, Kushner e Tillerson.
Essa situação, curiosa, deve ser entendida no contexto de um processo real
que será difícil reverter pela simples vontade política: em alguns aspectos a
descarbonização já se tornou um dado da economia e segue uma lógica de
competitividade. O barateamento drástico das eólicas e do solar não é mais
tão dependente de apoios governamentais. Certamente resultou de subsídios
à indústria, na China, do feed in tarif (um preço maior para a compra
compulsória de energia solar pelas concessionárias), na Europa, e da política
de investimento público em estímulo às energias limpas de Obama, no início
de seu governo. Hoje, no entanto, essas indústrias já são competitivas. Alguns
anos atrás, a reação trumpiana poderia, de fato, ter revertido a transição
energética nos EUA mas, atualmente, isso torna-se mais difícil. Ele poderá
atrapalha-la mas não a comprometerá embora ainda possa boicotar o
cumprimento do NDC norte americano e, sobretudo, frustrar novos avanços
para fazer face à magnitude do desafio.
O certo é que, durante um determinado período, quaisquer avanços maiores
deverão tangenciar os processos diplomáticos nos quais os EUA possam ter
poder de veto ou de obstrução -como é o caso da UNFCCC– e explorar
caminhos que passam por alianças bi ou plurilaterais entre países ou blocos
dispostos a avançar, como um eixo China-UE-Brasil e/ou articulações entre
esse eixo e agentes econômicos privados, entidades multilaterais (bancos de
desenvolvimento, etc.) e entes públicos subnacionais.
A maior das fraquezas evidentes da movimentação de Trump para reverter os
avanços recentes dos EUA em termos de ação climática é a grande autonomia
dos estados norte-americanos em termos de regulamentação ambiental e sua
própria pujança econlomica. O peso de estados como a Califórnia, Nova York,
lllinois, Washington faz com que sua adoção de padrões de emissão e regras
ambientais mais exigentes condicione o mercado a adota-las por mais que, no
âmbito federal, sejam boicotadas pela na nova gestão (ou liquidação) de Scott
Pruitt à frente da EPA. A indústria automobilística pode se ver livre de alguns
padrões federais de controle de poluição e de eficiência introduzidos pela
administração Obama mas, se quiser vender seus carros vendidos no enorme
mercado da Califórnia, terá de continuar respeitando-os.
No caso do carvão há um dado econômico inescapável: hoje o investimento
em novas unidades geradoras e a criação de empregos se deslocou para a
energia eólica, solar e gás. O solar sozinho cria muito mais empregos que o
carvão e mesmo uma política de forte favorecimento não mudará essa
realidade pois os recursos irão para uma maior automação e, eventualmente,
para o CCS. O solar continuará a empregar cada vez mais mão de obra e o
carvão cada vez menos. Em 2016, o setor de carvão empregava 160 mil (54 mil
na mineração) e o solar 373 mil.
Uma consequência problemática das políticas regressivas e protecionistas que
Trump propugna –mas implementa apenas parcialmente– será a perda de
competitividade em relação a países como a China, o Japão e a Alemanha em
diferentes ramos como equipamentos eólicos e solares. Na indústria
automobilística, sobretudo no advento do carro elétrico, a competitividade
também será afetada pelo seu reacionarismo.
A rede de assistência técnica e apoio financeiro dos EUA, com a USAID e
outros organismos norte-americanos, que Trump quer deixar à mingua, facilita
acesso a mercados que agora tendem a ser perdidos em função da sua atitude
fóbica em relação a “ajuda econômica” a outros países. Nada disso é novo. Já
havia ocorrido nos oito anos de George W Bush mas agora Trump leva essa
idiossincrasia ao extremo. Só que Bush esvaziou o poder regulamentador da
EPA e limitou seu raio de ação. Já Trump a está desmantelando enquanto
instituição. Cortou mais de 40% do seu orçamento e colocou um inimigo da
instituição, advogado de empresas poluidoras, na sua presidência. Quando se
lembra que a EPA foi fundada por um presidente republicano, fortemente
conservador, Richard Nixon e que a Convenção do Clima foi firmada por um
outro republicano George H W Bush (o pai) é possível apreciar na plenitude o
papel de Trump nesse bizarra trajetória.
Geopolítica caótica
A política de Trump em relação a essa questão vital para a humanidade, a
longo prazo, que é a mudança climática, por mais absurda que seja, tem ao
menos o mérito da simplicidade. Ela simplesmente não existe, é uma
“invenção dos chineses” ou das elites “liberais” (no sentido norte-americano
do termo) democratas e ponto final. Já seu posicionamento geopolítico vem
se demostrando confuso ao ponto de virar uma metamorfose ambulante, para
usarmos a imagem do inesquecível Raul Seixas.
Durante a campanha, o discurso de política externa de Trump tinha uma certa
coerência e seguia um filão bem assentado na história do partido Republicano:
o bom e velho isolacionismo. Essa política prevaleceu, entre o final da Primeira
Guerra e o início da Segunda, no período mais prolongado de presidências
republicanas: Waren G Harding, Calvin Coolidge e Hebert Hoover. Iniciou-se
com a humilhação infligida ao último presidente democrata do início do século
XX, Woodrow Wilson, quando os republicanos impediram os EUA a
integrassem a Liga das Nações, que Wilson havia articulado, com argumentos
muito parecidos aos que hoje são regularmente esgrimidos por eles contra a
ONU.
Franklin Roosevelt só conseguiu reverter o isolacionismo quando os EUA,
atacados pelo Japão, em Pearl Harbour, entraram na 11 Guerra. Trump, na
campanha ressuscitou não só esse isolacionismo mas o discurso de
chauvinismo econômico e cultural e atitudes de hostilidade a pa íses
tradicionalmente próximos dos EUA como México, Coreia do Sul, Japão,
Alemanha, instituições, multilaterais como a ONU, a UNFCCC, o Banco
Mundial, o BID, a OTAN, etc … todos acusados de se “dar bem nas nossas
costas”. Manifestou, por outro lado, uma grande simpatia por ditadores ou
líderes fortemente autoritários com Putin, Duterte, Sisi, Erdogan e outros. No
seu discurso os EUA deveriam cuidar dos problemas em casa e se desvincular
totalmente de conflitos que não ameaçassem diretamente seu território ou
seus interesses econômicos diretos.
Isso se articulou com um discurso anti-imigração esse de uma lavra muito mais
antiga dos séculos VIII e XIX quando cada nova leva de imigrantes, irlandeses,
alemães, italianos, poloneses, produzia ruma reação xenófoba dos que haviam
chegado a mais tempo. Nesse sentido Trump -neto de imigrantes alemãesseguiu um padrão bem preciso e com claros precedentes. Em certo momento, no século XIX, isso se havia expressado num partido de nome emblemático, o
Know Nothing Party, o partido dos que Não Sabem Nada. Uma tradição
histórica, portanto.
Uma vez no governo, as coisas logo se complicaram. Trump passou a uma
política ad hoc feita de improvisações, reviravoltas e piruetas. Algumas foram
até positivas. Uma semana depois de fazer elogios ao ditador sírio Bachar
Assad, determinou um bombardeio em represália ao ataque químico contra
civis. Depois de passar a campanha inteira ameaçando a China -uma
“manipuladora de moeda” cujas exportações ira taxar em 45%– aproximou-se
de Xi Jimping. Depois de desafiar os palestinos e o mundo árabe, em geral,
ameaçando mudar a sua embaixada para Jerusalém e depois de nomear um
embaixador em Israel, amigo dos assentamentos e detrator da solução de dois
estados, ele recebeu, na Casa Branca, o presidente da autoridade palestina
Mahmoud Abbas.
Basicamente acabou, sem admiti-lo, dando continuidade a política de Obama
no tocante ao combate ao Estado Islâmico. A grande diferença sendo,
naturalmente, essa sua grande admiração pelos regimes e líderes autoritários
e sua mais que bizarra relação com a Rússia com a qual, muito provavelmente,
tem rabo preso em função, tudo indica, de negócios escusos e bacanais
devidamente documentados pelos herdeiros da KGB com sua velha técnica do
kompromat. (coleta de material comprometedor para efeito de chantagem)
O traço mais marcante (e preocupante) de Trump é esse misto de
infantilidade, megalomania permanente, comportamento errático, ostensiva
desinformação sobre os temas e grande dificuldade de se concentrar neles
minimamente. Esse coquetel psicológico, é um grande fator de risco para o
exercício de qualquer cargo público de chefia, tanto mais para o da
presidência dos EUA, permanentemente acompanhada daquele oficial com a
famosa maleta “football” –os códigos de disparo de armas nucelares– e que
pode, no mundo cada vez mais instável que vivemos, a qualquer momento,
ordenar, em apenas quatro minutos, um ataque nuclear.
Isso é algo assustador porque há pelo menos três situações geopolíticas que,
em mãos ineptas, podem degenerar muito rapidamente em escalada e
conflito: Coreia do Norte, lran e mar da China.
A Coreia do Norte é o caso mais perigoso porque Trump está diante de um
jovem ditador também megalomaníaco, a frente de uma tirania totalitária,
armada até os dentes, que já possui umas 20 ogivas nucelares e busca
desenvolver mísseis capazes de atingirem os EUA. É um regime que no passado
demostrou propensão para correr grandes riscos, capturando um barco espião
norte-americanos e derrubando um avião norte-americanos, nos anos 60 e 70,
e, mais recentemente, afundando uma fragata e bombardeando uma ilha, sulcoreanas.
O regime norte coreano acredita que precisa de uma situação permanente de
tensão com um inimigo exterior pra manter sua coesão e controle social.
Trump já declarou que “simplesmente não vai acontecer” a ambição da Coreia
do Norte de desenvolver um míssil balístico intercontinental.
Os cenários para evita-lo parecem sernos seguintes:
1- um aperto nas sanções econômicas. Ainda haveria uma margem de aperto
mas sem uma participação ativa da China, que teme desestabilizar o vizinho e
considera pior o colapso do regime de Kim Jong-un do que a situação atual,
dificilmente funcionará. Para obter maior colaboração de Beijing, Trump vai
ter que pagar um preço, possivelmente no Mar da China.
2 – um ataque convencional, de precisão, contra o complexo nuclear nortecoreano. Provavelmente resultaria uma segunda guerra da Coreia. Difilmente iria eliminar a totalidade do arsenal nuclear de Kim. Esse certamente exerceria
represálias convencionais em grande escala, ou nucleares, contra a Coreia do
Sul, o Japão e as bases norte-americanas em ambos países. Seul, a pouco mais
de 40 km da fronteira, está particularmente exposta à artilharia do norte;
3 – um ataque nuclear, preventivo, em grande escala. Tão pouco garantiria a
eliminação da totalidade do arsenal nuclear de Kim que possui uma rede de
abrigos subterrâneos. Exporia Coreia do Sul, o Japão e, possivelmente, os
próprios EUA a uma represália nuclear. O regime Kim, a rigor, não precisaria
desenvolver um míssil intercontinental, poderia detonar uma ogiva
dissimulada num barco pesqueiro ou num iate, no litoral de uma cidade da
costa oeste norte-americana. Por outro lado, ao usarem armas nucleares os
EUA estariam quebrando um tabu de mais de mais de 70 anos. Como reagiriam
a China e a Rússia?
A situação coreana poderia eventualmente evoluir com uma dosagem sutil de
mais sanções econômicas, maior participação da China e um novo ciclo de
negociação, visando já não mais a eliminação completa do arsenal nuclear de
Kim mas seu congelamento e o não desenvolvimento do míssil
intercontinental, em troca do fim das manobras militares anuais na Coreia do
Sul que exacerbam a paranoia do regime de Pyonyang. Também teria que
incluir uma declaração formal de fim do conflito. De fato, a guerra da Coreia,
do início dos anos 50, nunca foi legalmente encerrada está apenas suspensa
por um simples armistício. É a solução que está sugerindo a China. Parece
sensata embora nada garanta que Kim venha cumprir sua parte. Trump terá
suficiente tirocínio para lograr essa façanha? Ele começou com do “isso não vai
acontecer” e com um anúncio de deslocamento de uma força tarefa com um
porta aviões (que na verdade navega pelo oceano Índico em sentido contrá.rio
enquanto o noticiário de TV dava a entender que se aproximava da península
coreana). Mais recentemente fez elogios a Kim: “he is a tough cookie” (ele é
bom de briga) depois de imaginar que Xi Jimping resolveria o problema para
ele. Depois acabou concluindo: “é uma situação muito complicada”. É mesmo,
Donald?
O Irã foi quase uma obsessão de Trump, durante toda campanha, quando
somou-se de forma estridente àqueles republicanos que haviam feito o
possível para torpedear o acordo nuclear firmado com o Irã pelos EUA, França,
China, Rússia, Reino Unido e Alemanha, no final do governo de Obama. Ele
dizia, com todas as letras, que iria se retirar do acordo. Atualmente, esse
parece um dos vários posicionamentos de campanha que Trump parece ter
tacitamente colocado de lado, por enquanto. Era uma posição eleitoreira sob
pressão do poderoso lobby da direita israelense liderado pela AIPAC. O próprio
Benjamin Netanyahu, que foi ao Congresso norte-americano denunciar o
acordo, parece ter colocado essa exigência na surdina. O entanto, na
concepção de Obama esse acordo era um primeiro passo. Deveria favorecer
uma melhoria efetiva no Irã, do ponto de vista econômico, que abriria caminho
para uma maior aproximação.
A contínua predominância da linha dura, no que pese sua derrota eleitoral,
inibe o presidente Hassan Rohani a evoluir na distensão e existem as outras
questões -Síria, Hezbollah, lemen– que são obstáculos a uma melhoria efetiva
de relações. Do seu lado, os EUA, sob pressão do congresso republicano, vem
intensificado sanções econômicas diretas ou indiretas que embora não
contrariem a letra do acordo vão contra o seu espírito e atrapalham Rohani na
sua necessidade demostrar a população os frutos concretos de ter negociado
com o “grande satã” .
A linha dura iraniana baseada no aparato militar e de segurança, abençoado
pelo aiatolá Khamenei, por sua vez se posiciona contrariamente a qualquer
aproximação e busca expandir suas conquistas ou influências no lraque, Síria,
Líbano e lemen. Essa dialética entre a linha dura de Teerã e os republicanos
pode facilmente levar ao colapso do acordo com tudo que isso implica: a
retomada do programa nuclear militar do Irã e o risco de um ataque às suas
instalações por parte de Israel e/ou dos EUA. A situação na Síria com os
frequentes ataques aéreos israelenses contra transferências de armas
modernas para o Hezbollah e incidentes na região do Golan, onde a
organização xiita pro-lrã tenta se estabelecer, são pontos onde facilmente
tensões podem degenerar em guerras. O mesmo vale para o fraque onde
forças especiais dos EUA e a Guarda Revolucionária do Irã e suas milícias
iraquianas praticamente coabitam.
A situação de mais grave em potencial, embora, a curto prazo, apresente
risco menor, é a do mar da China com ilhas reivindicadas pela China mas
também Vietnam, Japão e Filipinas. A China vem construindo ilhas artificiais e
bases militares, os EUA mantêm a tradição de efetuar patrulhas navais na área
para ostentar a “liberdade de navegação” em águas que considera
internacionais. Na área já ocorreram incidentes e provocações entre barcos
pesqueiros e barcos de guerra da China, do Vietnam e do Japão e a ocupação
de uma ilha reivindicada pela China por ativistas nacionalistas japoneses. Um
incidente envolvendo navios norte-americanos e chineses pode ocorrer.
Outro foco potencial de conflito geopolítico é o da China com Taiwan,
considerada uma província rebelde, desde 1948. O atual governo de Taiwan é
independentista -embora não a propugne não de imediato– e erros de
cálculo de são possíveis. Os EUA assumiram o compromisso de defender
Taiwan no caso de um ataque chinês o que os deixa de certa forma reféns dos
atos dos independentistas que, até agora, não agiram de forma aventureira
mas nada garante o futuro quando uma nova geração menos prudente chega
ao governo.
• Finalmente, temos o conjunto de tensões com a Rússia. A estranha
proximidade de Trump com Putin vem sendo comprometida pelos escândalos
e investigações sobre uma possível ligação da sua campanha com a inteligência
russa. Geopoliticamente, há diversos focos de desentendimento potencial
porque os interesses são objetivamente conflitantes. Putin, um nostálgico do
império da URSS, quer restabelecer uma zona de hegemonia geopolítica a
mais ampla possível, que inclui a Ucrânia, cujo leste ocupa por intermédio de
milícias russo-ucranianas interpostas e a Criméia que já anexou formalmente
ao território da Rússia.
Nos países bálticos: Letonia, Estonia e Lituânia, há importantes minorias
nacionais russas que se sentem discriminadas havendo um compromisso de
Putin de protege-las. Finalmente temos o atual governo de extrema-direita da
Polônia que cultiva valores nacionalistas similares aos de Putin, só que
historicamente adversos, alimentando um profundo ressentimento anti-russo
recentemente agravado pela narrativa, totalmente delirante, que aponta
Moscou como responsáveis pelo desastre aéreo que custou a vida do
presidente Lech Kaczinski, numa visita a Smolensk, para celebrar o aniversário
do massacre de Katyn, em 1940, quando milhares de oficiais poloneses,
prisioneiros de guerra, foram executados por ordem Josef Stalin. A extremadireita polonesa brinca com fogo ao tentar alimentar esse mito soprando as
brasas de conflitos históricos e ódios nacionais arraigados que já custaram
tantas vidas no passado.
Todas essas e algumas outras situações demandam por parte dos EUA a
liderança inteligente e sóbria de um presidente como era Barack Obama, frio,
cerebral, muito bem informado e capaz de empatia, equilibrando-se sempre
entre idealismo e realismo com um claro propósito histórico. Herdou uma
situação econômica e geopolítica terríveis. Recuperou a economia norteamericana com uma estratégia neokeynesiana e reparou, até certo ponto, o prejuízo causado pela catastrófica decisão de George W Bush ao invadir o
lraque. É criticado no seu próprio partido por não ter tido uma postura mais
intervencionista na guerra civil da Síria mas é questionável se ela -que em
nenhum momento contou com o respaldo da opinião pública norteamericana-teria resolvido ou agravado a situação. Agora as mesmas crises geopolíticas são herdadas por um presidente ainda menos preparado
intelectualmente que George W Bush e que constitui um risco permanente.
Novas ameaças
• Somados e combinados com todos esses focos de conflito geopolítico
“tradicionais” temos as tensões econômicas decorrentes do posicionamento
protecionista propugnado por Trump, na campanha, que ele também vem
tendo dificuldade de por em prática, no governo, mas que continuam a causar
incerteza, preocupação e medo. A retirada da NAFTA, acordo comercial com o
México e o Canadá, o muro ao longo do rio Grande, os conflitos comerciais
com a China e a Alemanha que, segundo Trump, use dão bem em cima de
nós”. A antipatia face a UE, a desconfiança da OMC, do Banco Mundial e do
BID. Uma eventual disputa protecionista estimulada por Trump ou decorrente
do Brexit, a retirada do Reino Unido da UE, com risco de virar um superparaíso fiscal, certamente contribuem para exacerbar tensões internacionaiscomo ocorreu nos caóticos anos que precederam a 11 Guerra onde a recuperação da crise de 1929 foi fortemente atrapalhada pelas disputas comerciais e cambiais protecionistas.
Para coroar o quadro de instabilidade temos o papel inédito jogado pelos
agentes não-governamentais: terrorismo djihadista, narcotráfico internacional
e pirata ria cibernética. Cada um desses problemas é um universo a parte que
demanda grandes esforços e muita concertação entre os governos e com as
sociedades civis. No caso do narcotráfico demandaria uma revisão radical da
concepção de “guerra às drogas” que Ronald Reagan impôs à ONU e que só
tem feito agravar, exponencialmente, o sofrimento humano, enriquecer e
empoderar mais o crime organizado, corroer e corromper o estado em
inúmeros países.
O pano de fundo de tudo isso é uma economia global que tende a não mais
ter o crescimento espetacular que de décadas passadas e cuja distribuição de
renda piora, globalmente, embora tenha tirado da miséria e da pobreza
quantidades inéditas de gente, em alguns países em desenvolvimento como foi
o caso da China. O mundo desenvolvido, onde essa concentração se agravou e
onde grandes contingentes de trabalhadores, sobretudo na indústria, sentem o
desemprego persistente e a evidência de que a vida dos filhos será menos
próspera que a da geração anterior, tronou-se vulnerável a um populismo de
direita do qual o próprio Trump é expressão eloquente.
Esse contingente, pouco instruído, despreparado para lidar com a
globalização, sensível a discursos nacionalistas, anti-imigração e autoritários
deu a Trump uma base sólida para sua eleição (minoritária), possibilitou o
Brexit e levou a governos autoritários de extrema-direita, na Hungria, na
Polônia e nas Filipinas. O modelo mais sofisticado de exercício do poder nesse
estilo é o de Putin. A Rússia virou um país de demografia fortemente
decrescente, dependente de matérias primas, sobretudo petróleo, dominado
por urna oligarquia capitalista selvagem, apoiada numa forte máquina
repressiva e de propaganda com controle total do processo político.
Para Trump o grande atrativo de Putin é justamente essa capacidade de se
impor, fazer valer sua vontade, esmagar os opositores e se perpetuar no
poder, sem um sistema de pesos e contrapesos das democracias que ambos
desprezam. A Rússia passou a ser um modelo já não mais para uma velha
esquerda, sonhando com seu modelo socialista, mas para a nova direita
ansiando por um governo forte, autoritário e ferozmente nacionalista.
Os primeiros meses do governo Trump são uma montanha russa diária com
declarações escalofobéticas, reviravoltas e ziguezagues que deixam tontos os
observadores. Há, no entanto, nos seus atos, uma certa clareza de propósitos
altamente reacionários no tocante ao desmantelamento do seguro saúde,
apelidado de Obamacare, que na próxima década poderá privar 24 milhões de
norte-americanos de qualquer proteção digna do nome; a redução de
impostos para os mais ricos e a destruição dos avanços ambientais climáticos.
Trum p poderá se enredar numa situação parecida à que levou Richard Nixon
ao impeachment, em 1974. Também paira sobre ele a emenda 25 da
Constituição que permite afastar um presidente “incapacitado” por decisão da
maioria dos secretários e do vice presidente acompanhados pelo voto de 2/3
do Congresso. Foi certamente pensada para outro tipo de situação (uma
doença incapacitante, tipo AVC ou uma morte cerebral num atentado) mas
certamente aplicar-se ia a situações de comportamentos extremos que podem
de fato acontecer com esse personagem.
São caminhos que nesse momento parecem altamente improváveis, na atual
correlação de forças, na qual os republicanos têm maioria nas duas casas do
Congresso e na Suprema Corte. Não sabemos ainda qual os limites de
insanidade que Trump teria de transgredir para que um número suficiente de
republicanos decidisse promover sua substituição pelo vice presidente Mike
Pence.
Todos olhos estão postos nas eleições de 2018 quando a Câmara e parte do
Senado são renovados. No Senado, a tarefa dos democratas é muito ingrata
pois a grande maioria das cadeiras em disputa é atualmente controlada por
eles próprios e há pouca margem para reverter a escassa maioria republ icana .
Na C5mara existe o tradicional problema do chamdo gerrymandering (uma
forma de dividir os distritos eleitorais que favorece fortemente dos
republicanos que controlam a maioria dos governos de estado e assembleias
estaduais que a decidem).
Com toda a impopularidade precoce de Trump, 80% dos republicanos ainda o
apoiam porque conseguiu emplacar junto a esse eleitorado que se informa
pela Fox News e pelas redes sociais militantes sua narrativa, totalmente
indiferente aos fatos, desacreditar imprensa e seus “fatos objetivos” e fazer
valer seus “fatos alternativos”. Ou seja, nada garante que estejamos diante de
um fenômeno efêmero. Algo se quebrou na sociedade norte-americana como
a conr :?d amos.
Se a popularidade de Trump junto à base republicana for se erodindo, aos
poucos, restar-lhe-á aquele velho recurso do qual um presidente norteamericano, impopular, pode lançar mão: uma demonstração bélica em alguma parte do mundo. Trump já o fez ao bombardear uma base aérea na Síria. Foi
uma decisão que se pode até considerar justa em função da flagrante
violação, por parte do regime Assad, do acordo de eliminação das armas
químicas com os EUA e a Rússia com supervisão da ONU. Foi também o único
momento em que sua popularidade recuperou alguns pontos. Um atentado
terrorista de grande magnitude também pode ajuda-lo, quanto pior, melhor
para ele.
Trata-se portanto de uma situação totalmente inédita e imprevisível que afeta
perigosamente a economia e geopolítica globais e entrava os mais importantes
esforços para lidar com os mais importantes problemas que se colocam diante
da comunidade internacional: o enfrentamento das mudanças climáticas, da
miséria e desigualdade crescentes, da falta de mecanismos adequados de
financiamento para um desenvolvimento sustentável e de baixo carbono; a
prevenção e resolução de conflitos e dos riscos de proliferação nuclear. É uma
situação internacional que também não favorece a recuperação da economia e
das instituições no Brasil que, em tese, poderia encontrar novos espaço de
afirmação e de alianças, nessa conjuntura internacional, com a Europa, China e
entes sub-nacionais norte-americanos, mas que se encontra amarrado aos
seus próprios problemas, incapaz de aproveitar oportunidades e de ocupar
espaços que eventualmente se vislumbrem. São as evidencias internacionais e
nacionais de uma tempestade perfeita .