A rodada de palestras e debates do Seminário: Manifestações de Junho, Razões e Perspectivas, que a Fundação João Mangabeira (FJM), do Partido Socialista Brasileiro (PSB), promoveu na tarde desta sexta-feira (09) no Rio de Janeiro, trouxe a análise de três sociólogos de destaque no Brasil América Latina e Europa. No painel “O olhar dos Intelectuais sobre as Manifestações”, coordenado pelo presidente da Fundação Perseu Abramo, Márcio Pochman, o primeiro a falar foi o sociólogo, jornalista e professor da Universidade King’s College de Londres, Paolo Gerbaudo.
Ele comparou as manifestações de rua no Brasil e na Turquia, onde desde maio os manifestantes ocupam a Praça Taksim, em Istambul, e observou que ambas têm várias semelhanças, como o uso dos mesmos símbolos – a bandeira nacional e a máscara característica do filme V, de Vitória. “Eles representam os mesmos sentimentos nos dois casos: as bandeiras nacionais, que por muito tempo estiveram vinculadas a movimentos da Direita, foram redescobertas como símbolo de orgulho nacional e prevaleceram nas manifestações nos dois países, e a máscara, como no filme, passou a representar uma revolução popular contra um governo autocrático”, comparou. “São símbolos que conseguiram captar o sentimento de revolta e mudança das duas populações”.
Para Paolo Gerbaudo, o uso das redes sociais, especialmente o Facebook e o Twitter, foi muito importante para a organização e mobilização das manifestações, mas seria superficial e ilusório afirmar que o acesso a essas novas tecnologias, por si só, teria criado os movimentos. “Isso não é verídico, as pessoas apenas usaram essas tecnologias para se comunicar, trocar experiências e indignações virtualmente e, dali, marcar os horários e locais dos protestos, é uma nova plataforma de atuação”, diferenciou. “Na verdade, as manifestações deixaram evidente que as críticas às gerações tecnológicas da atualidade, de que estão isoladas e inertes em frente a seus computadores e celulares, não procedem – e a hashtag #Vem pra Rua mostrou muito bem isso”.
O sociólogo destacou ainda que as manifestações não foram movimentos que desenvolveram alternativas, mas apenas se manifestaram contra quem está no poder agora, os políticos, bem como contra os partidos e instituições como os sindicatos, vistos pelos participantes como organizações meramente corporativas, que não vão além da defesa dos interesses de seus filiados.
Gerbaudo avaliou que a grande novidade é que, ao contrário de outro movimento de protesto mundial, o da antiglobalização, que está dividido em nichos de várias minorias (gays, negros, imigrantes, etc) que buscam se somar e, assim, atingir a maioria da população, o movimento das manifestações de junho já representa a maior parte da população. “Vimos nas ruas as pessoas do dia-a-dia, os 99% da população que não tem cargo político ou semelhante e passa pelos mesmos problemas básicos – esse é o caráter principal das manifestações de praça pública, de rua”, considera.
Outro ponto destacado por ele é que essas pessoas lutam por uma causa nacional, mesmo em meio a uma crise global. “Chamaram a atenção do governo para o fato de que não existem apenas as multinacionais, os acordos internacionais, as regras do mercado – aqui ao lado, há um país com muitas demandas básicas e seu povo esperando por ações nessas áreas: transporte, saúde, educação”.
Para o sociólogo, em função de todos esses aspectos é preciso elogiar o que está sendo feito pelos manifestantes e também a forma utilizada, “simplesmente porque é uma maneira de se desenvolver uma democracia realmente mais participativa”.
Movimento por Melhorias – Já o sociólogo e diretor do Instituto Análise, Alberto Carlos Almeida, lembrou que os indignados, como ficaram conhecidos os manifestantes de junho no Brasil, nada mais fizeram do que ir às ruas reclamar atitudes de todas as esferas de governo para melhorar a realidade dos serviços públicos oferecidos atualmente. “Isso acontece quando as pessoas percebem que estão dando mais do que recendo, no caso, pagando mais impostos sem retorno na prática”, reforçou ele. “Foi basicamente um movimento por melhorias, que surgiu justamente em função do Brasil ter conseguido melhorar as condições das pessoas mais pobres nos últimos anos. Com filhos com o dobro do nível educacional dos pais, mais acesso ao consumo e à informação, essa população acabou formando massa crítica”.
O problema, aponta Alberto Almeida, é que os governos e o sistema político todo do país não acompanharam essa mudança de mentalidade da população brasileira, mesmo que ela tenha ocorrido lentamente. “Vivemos um momento de transição no Brasil, entre gerações que ainda aceitam políticos corruptos e que ostentam poder e riqueza e as novas gerações, que não querem mais isso e se revoltam contra os símbolos autocráticos do poder – palácios para trabalhar e morar, carrões, jatinhos da FAB e helicópteros para transportá-los pelo país”.
Traçando um comparativo com outro grande movimento de rua no Brasil, o das Diretas Já, nos anos 80, o sociólogo destacou três importantes diferenças entre elas. A primeira, enquanto as Diretas Já tiveram como lideranças os governantes dos três principais estados do país, à época nas mãos da oposição, as Manifestações de Junho não tiveram líder algum. Segunda, enquanto as Diretas Já exigiam unicamente a aprovação de uma lei que permitisse as eleições diretas para Presidente da República no país, as Manifestações de Junho começaram com a bandeira do preço do transporte público mas desaguaram em dezenas, talvez centenas de outras reivindicações. E, por fim, a terceira diferença e mais significativa envolve o futuro do movimento: enquanto as Diretas Já perderiam o sentido e a finalidade quando a lei para eleições diretas foi aprovada pelo Congresso Nacional, as Manifestações de Junho, ao contrário, não têm prazo para acabar. Não se sabe quando haverá uma resposta do Governo às suas reivindicações.
“Elas criaram expectativas que não serão atendidas no curto prazo, pois o que foram pedir nas ruas, além do básico sobre os serviços públicos, são reclamações da população já há mais de 20 anos – como o combate à corrupção e a reforma política”, ressaltou. “A margem de manobra no mundo político hoje já diminuiu muito mas, para chegar nas mudanças reais e na maior participação que o povo quer, é preciso mudar as gerações que estão no poder e isso só se consegue em prazos maiores, de cerca de dez anos ou mais”.
Alberto Almeida acredita que, no momento, vivemos um efeito de mídia das manifestações, refletidas na queda da popularidade dos políticos, inclusive da Presidente da República, Dilma Roussef. “Elas podem voltar a subir, não sabemos, o certo é que o prazo que a população deu ao governo para as respostas é a Copa do Mundo em 2014, quando o Brasil estará novamente em evidência no mundo todo”, avaliou.
Para ele, não foi à toa que as manifestações ocorreram justamente durante a Copa das Confederações e as inaugurações de estádios monumentais em vários estados. “Se o futebol era o ópio do povo, no sentido de amortecê-lo frente a sua realidade, dessa vez teve o efeito da cocaína: acelerou e instigou a revolta na população, que constatou que, se há dinheiro para construir estádios naquele padrão, deve haver também para hospitais, escolas, estradas, saneamento urbano, etc.”, resumiu. “A única opção dos governos neste momento, diante desse contexto, é gerenciar as expectativas da população, porque até 2014 evidentemente que não conseguirá atender a todas”.
Lição para a Esquerda – O sociólogo e cientista político Emir Sader, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), disse que é preciso inserir as manifestações de junho como um marco do que aconteceu no país nos últimos dez anos, ou seja, abrangendo os avanços sociais e econômicos alcançados pelo governo petista de Lula e Dilma. Por isso, ele discorda dos dois principais slogans do movimento – O gigante acordou e Contra tudo isso que está aí – e acredita que houve uma tentativa de manipulação da mídia sobre o movimento.
Para Emir Sader, como o movimento não se traduz em força política, torna-se paradoxal em certos aspectos. “Por exemplo, uma leitura do que foi pedido nas ruas provavelmente se traduziria com o fim das emendas parlamentares, do financiamento privado das campanhas políticas e o avanço da Reforma Política. Mas, enquanto o povo quer isso, o Congresso está votando agora algo totalmente diferente, como o orçamento impositivo”, comparou.
Mesmo assim, aponta Sader, as manifestações foram uma lição forte para a esquerda brasileira. “Pela primeira vez tivemos um movimento popular forte que não apenas não é de esquerda, mas também é contra ela, isso é uma bordoada”, avaliou. “O Governo de fato não foi capaz de recolher essas demandas da população e slogans como o do Padrão Fifa para os serviços públicos, muito bem sacado, deixaram isso claro”.
Emir Sader defendeu, como saída, que se possa eleger uma nova geração de políticos com financiamento público de campanha e, mais ainda, que os candidatos sejam oriundos dos movimentos sociais. “Temos uma grande chance ainda que são as próximas eleições, em 2014. Temos que eleger uma maioria de esquerda e convencer os movimentos sociais a lançarem seus candidatos nessa disputa”, pregou.
Humildade e honestidade –Concluindo o painel, a secretária Especial da Executiva Nacional do PSB, Mari Trindade Machado, afirmou que o debate sobre a questão da Copa do Mundo nas manifestações de junho é inevitável mas deve, essencialmente, ser discutido sob duas condições pelos partidos políticos: a humildade e a mais absoluta honestidade. “Fomos todos pegos de surpresa por um movimento de rua legítimo e que nos trouxe, acima de tudo, a esperança de importantes mudanças no nosso país”, ponderou. “As pessoas foram às ruas lutar por causas muito básicas, reivindicar o que não está bem em suas vidas e precisa ser mudado”.
Ela lembrou que, além da juventude atual viver em mundo diferente de quando as esquerdas organizavam esses movimentos, referindo-se às novas tecnologias e ao acesso generalizado à informação, também vive em um país diferente. “Um país que em pouco mais de 20 anos viu sua população urbana explodir: hoje, mais de 85% dos brasileiros vivem nas grandes cidades e o planejamento dos governos não acompanhou essa movimentação”, comparou. “Além disso, temos um Congresso que também não acompanha as demandas da população e prefere votar absurdos como a Cura Gay ou a Bolsa Estupro – uma pauta totalmente antagônica com o que as pessoas foram reclamar nas ruas".