Assistidas de maneira precária pelo governo federal, as comunidades indígenas e quilombolas pedem socorro enquanto os casos de coronavírus aumentam.
Os povos indígenas são mais vulneráveis a viroses, especialmente a infecções respiratórias como a covid-19. Segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), as doenças respiratórias são, ainda hoje, a principal causa de mortalidade infantil entre indígenas.
Acompanhamos ao longo da história o extermínio dessa população devido a guerras e contato forçado, resultando no contágio de viroses e outros tipos de doença. A falta de acesso ao sistema de saúde faz com que os indígenas se tornem mais vulneráveis ao vírus, assim como a dificuldade em praticar o isolamento social na vida em aldeia, que é toda compartilhada.
É desafiador acompanhar a evolução do número de novos casos de coronavírus entre os indígenas. Assim como os dados divulgados pelo Ministério da Saúde, a alta taxa de subnotificação nesse segmento impede a noção da extensão real da pandemia. Outro grave problema é a ausência de dados sobre a parcela da população que vive fora de terras indígenas homologadas, como os grupos que aguardam a finalização do processo de demarcação.
Diante da subnotificação dos casos pelos órgãos oficiais, a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) realiza um levantamento independente. Os números são consideravelmente superiores aos notificados pela Sesai, que contabiliza somente casos em terras homologadas.
Uma plataforma de acompanhamento da evolução do novo coronavírus disponibiliza os dados coletados pela Apib diariamente. Segundo o levantamento, já são 94 povos infectados pela Covid-19, mais de 2.947 indivíduos indígenas com casos confirmados e 261 mortes.
Povos isolados
As comunidades indígenas do Vale do Javari, parte do Amazonas que concentra o maior número de povos isolados do mundo, produziram uma nota pedindo socorro pela primeira vez, desde o início da pandemia. Essa terra indígena tem área de 8,5 milhões de hectares e faz fronteira com o Peru.
“Com o enfraquecimento e o descaso dos órgãos públicos motivados por uma política anti-indígena do governo atual, as ações relacionadas a vigilância e saúde se tornam insuficientes para a complexidade da região. As epidemias em nosso território como a da malária, coqueluche e hepatites, levaram a óbitos vários indígenas por causa de uma lenta e ineficaz resposta das autoridades. Após uma longa história de dizimação, nós povos indígenas resistimos e nossa população aumentou. Atualmente, corremos o risco novamente de ser reduzidos por uma doença dos não indígenas”, diz a carta.
A União dos povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) é representante dos povos Mayoruna (Matses), Matis, Tüküna (Kanamary), Kulina (Pano), Korubo e Tsohom-Djapá. Sua coordenação afirma no texto divulgado nessa semana que a suspeita é que os primeiros casos de Covid-19 tenham chegado até as aldeias afetadas através dos professionais da saúde ou por funcionários do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI).
Segundo a Unijava, faltam testes para a Covid-19 em todas as aldeias, meios de remoção rápida dos doentes, quarentena mais rígida entre os profissionais da saúde e uma barreira sanitária nas principais entradas das terras.
O procurador jurídico da Univaja, Eliésio Marubo, disse em entrevista que a comunidade teme pelo extermínio parcial ou total desses povos. “Nós já estamos trabalhando numa forma de instar as autoridades a justificarem porque esse contágio aconteceu e qual o plano de ação, como será desenvolvido. Com o ingresso do vírus na nossa comunidade vamos esperar uma grande mortandade de pessoas. O genocídio já está anunciado no Vale do Javari e a partir de agora vamos contabilizar os corpos”, contou.
Dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), mostram que o baixo financiamento à saúde indígena em 2019 deixou essa parcela da população ainda mais vulnerável aos efeitos da pandemia em 2020.
Segundo o estudo, a saúde indígena foi a área que mais perdeu recursos entre as políticas públicas voltadas aos direitos destes povos no último ano. O programa “Promoção, Proteção e Recuperação da Saúde indígena” teve redução de 5% do valor autorizado pelo governo federal de 2018 para 2019.
O Ministério Público Federal (MPF) recomendou uma série de medidas e ações para as autoridades responsáveis pela saúde indígena. Entre as recomedações ao Executivo estão a inclusão em grupo prioritário de vacinação contra gripe, o fornecimento de alimentos e produtos de higiene, a descentralização de recursos e de licitações para aquisição de material de combate e prevenção à nova doença, bem como a distribuição de insumos laboratoriais como testes PCR e sorologia.
“O cenário de risco de genocídio dos povos indígenas reclama ações emergenciais dos órgãos e entes públicos, Secretaria Especial de Saúde Indígena, União, Estados e Municípios, de forma complementar, coordenada e integrada, sobretudo na prevenção da disseminação da doença entre os povos indígenas, mas também na garantia do pleno atendimento, evitando a ocorrência de ‘pontos cegos’ e a evolução dos casos eventualmente constatados decorrente da demora no atendimento”, argumentam os 32 procuradores que assinam a peça.
O MPF sustenta que as medidas de restrição de acesso em vigor atualmente não garantem proteção territorial suficiente para evitar o contágio dos povos indígenas pelo novo coronavírus. Isso porque as terras indígenas sofrem com invasões de garimpeiros, madeireiros, dentre outras atividades criminosas, que induzem fluxo constante de não indígenas nestes territórios, tornando ineficazes as políticas sanitárias e de isolamento social. Por esse motivo, o MPF pede que a Funai implemente imediatamente medidas de proteção territorial em todas as terras indígenas identificadas ou delimitadas, declaradas ou homologadas, de modo a impedir ou retirar invasores, especialmente garimpeiros e madeireiros.
Invasão de Terras
Em meio ao crescente número de casos de Covid-19 na população indígena, a invasão de suas terras apresenta-se como mais uma forma de aumentar a contaminação. Um levantamento realizado por procuradores é mais um dos atestados da pressão que a população indígena enfrenta no Brasil, tanto do ponto de vista social, quanto ambiental e fundiário.
O Ministério Público Federal identificou, nesta terça-feira (9), que quase 10 mil propriedades privadas inscritas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) estão sobrepostas a terras indígenas em diferentes fases de regularização ou a áreas com restrição de uso.
O CAR é um registro público eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais e trata-se do primeiro passo para obtenção da regularidade ambiental do imóvel.
Em nota, o coordenador da Câmara de Populações Indígenas e Comunidade Tradicionais, subprocurador-geral da República Antônio Bigonha, pediu atenção para que o CAR não se torne um facilitador de crimes ambientais: “O Estado brasileiro tem que tomar providências para que esse instrumento, criado para o planejamento ambiental e econômico, e o combate ao desmatamento, não seja usado para se cometer crimes ambientais e grilar as terras dos índios”.
A pesquisa considerou dados do período de 21 a 31 de maio de 2020. Foram identificados 9.901 registros de propriedades cujos limites coincidem com territórios indígenas ou com áreas interditadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) para proteção de povos indígenas isolados.
Segundo a investigação do MPF, Estados da Amazônia Legal como Pará, Rondônia e Amazonas lideram o número de imóveis rurais localizados em terras destinadas a povos indígenas.
Atuação do PSB
No mês de maio os parlamentares socialistas que se juntaram à luta de milhares de brasileiros que protestaram contra a aprovação da Medida Provisória nº 910/19 puderam comemorar uma vitória em meio às tentativas do Governo Federal de facilitar a devastação da Amazônia.
A MP, que tratou da regularização fundiária, foi incansavelmente criticada por ambientalistas porque facilitava a grilagem de terras, invasão de terrar indígenas e devastação da Amazônia. “Foi uma vitória importante, mesmo que ainda parcial. Vitória de todos que estão à luta pela Amazônia, das Frentes, do Fórum, das ONGs, cientistas, artistas, intelectuais e ambientalistas. Quero dividir a esperança de que o projeto seja votado somente após a pandemia e que, daqui para lá, teremos muita luta, com unidade e mobilização social. Não vamos desanimar, são muitas dificuldades, mas no meio delas estamos alcançando vitórias.”
Além de ter atuado em oposição a MP 910, o deputado federal Bira do Pindaré (PSB-MA), presidente da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas, apresentou o Projeto de Lei nº 2169/2020, que tramita em regime de urgência na Câmara, e dispõe sobre medidas de apoio às comunidades quilombolas durante a pandemia do novo coronavírus.
A Frente se reuniu recentemente com representantes da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), do Ministério Público, da Fundação Palmares e da Defensoria Pública com o objetivo de debater medidas emergenciais a serem adotadas para proteção das comunidades quilombolas no enfrentamento à crise de Covid-19.
“O Parlamento deu um importante passo ao viabilizar a Renda Básica Emergencial para pessoas com dificuldades em função do novo coronavírus, mas ainda persiste a necessidade de conceder atenção especial à saúde dos povos indígenas e comunidades quilombolas, tendo em vista a situação peculiar em que vivem”, explicou Bira.