Francisco abre a porta de sua casa e sai em disparada à procura de um médico. Naquela manhã de sábado, sua sogra, diabética, sentia fraqueza, sono, e muita sede. Acostumado a identificar os sinais da hiperglicemia (quando a taxa de glicose sobe), o carpinteiro sabia que precisava agir rápido. “O jeito foi levá-la às pressas ao posto de saúde porque os sintomas são muito severos. Ela quase morreu por não ter tomado a insulina”, lembra o dedicado genro.
A interrupção do uso da insulina, considerada um medicamento de uso contínuo, é a causa mais comum da hiperglicemia. Sem saber que o laboratório havia retirado das prateleiras o produto que costumava tomar, a aposentada ficou dois dias sem o tratamento até sofrer a crise, em março de 2010. “Tivemos de procurar outra marca de insulina. E quando encontramos era muito mais cara”, lamenta Francisco, morador de Santo Antônio do Descoberto (GO), no entorno do Distrito Federal.
A sogra de Francisco Pereira é apenas mais uma diabética a reforçar a estatística anunciada pelo Ministério da Saúde (MS). Para se ter uma idéia, segundo o Vigitel 2007 (Sistema de Monitoramento de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas Não Transmissíveis), a ocorrência média de diabetes na população adulta (acima de 18 anos) é de 5,2%, ou quase sete milhões de portadores da doença.
Diante desses índices, é possível imaginar quantas pessoas têm sido prejudicadas pela retirada de medicamentos de uso obrigatório do mercado diante do desinteresse comercial de algumas empresas. Segundo especialistas, no entanto, quem sofre ainda mais com a interrupção do tratamento são os portadores de doenças raras; principalmente as de origem cardíaca, respiratória e neurológica.
A redução nos lucros dos fabricantes é a principal causa que leva os pacientes a enfrentar dificuldades para seguir a prescrição médica, segundo alguns sindicatos de medicina. Como têm uso muito restrito e, em muitos casos, a patente já venceu, esses remédios costumam ser baratos e receitados para um universo bem reduzido de pessoas. Sem a margem de lucro esperada o laboratório simplesmente deixa de produzi-los. O efeito imediato é o desaparecimento irremediável dos medicamentos das farmácias e dos hospitais.
Atento ao problema, o deputado Jonas Donizette (PSB-SP) apresentou o Projeto de Lei 1467/11 para garantir total disponibilidade a quem precisa deste tipo de medicação. “Como esses produtos não rendem altos índices de lucro à indústria farmacêutica, são simplesmente retirados de circulação. E isso prejudica a qualidade de vida das pessoas e tira a esperança de uma vida melhor”, justifica o parlamentar.
De acordo com a proposta, os fabricantes de medicamentos de uso contínuo sem similar, equivalente ou genérico no mercado, só poderão interromper temporariamente ou cessar em definitivo a fabricação com a prévia autorização do Ministério da Saúde e publicada no Diário Oficial da União.
Atualmente, basta o fabricante de qualquer medicamento manifestar o interesse de suspender ou de parar a fabricação à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dentro do prazo estipulado na lei.
Se o projeto do socialista for aprovado e a interrupção for temporária, o responsável pelo abastecimento passará a ser obrigado a indicar uma nova empresa para assumir a produção pelo tempo que durar a suspensão. E, se for em definitivo, a interrupção só sera autorizada com a indicação de empresa instalada e em operação no Brasil. Nesse caso, os consumidores não precisariam importar a medicação de outros países. O que seria uma economia de tempo e de dinheiro para quem depende de um medicamento por toda a vida.
A empresa indicada também precisará juntar o termo de cessão dos direitos sobre a medicação, relativos à produção em território nacional, em favor do Ministério da Saúde. “A qualificação da empresa e sua capacidade de continuar a produção deverá ser comprovada”, afirma Donizette.
Outro ponto de destaque é a mudança no prazo da comunicação à Anvisa para a empresa interromper a fabricação dos remédios. De 180 dias, prazo mínimo exigido atualmente, passa a ser de 12 meses. O fabricante também deverá informar por que pretende suspender ou interromper a produção e o prazo para a sua retomada.
Lei atual não impede retirada de medicamento
A reportagem procurou o Ministério da Saúde e foi informada de que “toda pauta relacionada à regulamentação de medicamentos é de responsabilidade da Anvisa.”
Por sua vez, a agência reguladora explica, em nota, que “a legislação sanitária não contempla dispositivo que possibilite impedir a retirada de um medicamento do mercado diante do desinteresse comercial. No entanto, há determinação para que a empresa que deseje, hoje, interromper a fabricação, permanente ou temporariamente, deverá comunicar a agência com antecedência mínima de 180, sob pena de incorrer em infração sanitária.”
Segundo a Anvisa, depois de feito o comunicado, o risco de desabastecimento no mercado é monitorado. E, se houver risco evidente, o Ministério da Saúde será informado para que avalie as providências cabíveis para garantir a continuidade da assistência farmacêutica aos pacientes.
A agência salienta ainda “que muitos medicamentos possuem substitutos terapêuticos, de modo que a mudança de tratamento pode não causar prejuízo ao paciente. Já para os medicamentos únicos em determinada indicação, é possível buscar alternativas em outros países, como dispõe a Resolução 81/08, que exige a prescrição médica para autorizar a entrada do produto no Brasil.”
Diferentes setores da medicina, no entanto, discordam do órgão oficial. Alguns médicos entrevistados já perceberam que o desabastecimento de remédios de uso contínuo tem levado muitos pacientes a procurar um medicamento similar. E todos foram unânimes ao desaconselhar qualquer mudança sem consulta médica. “Mesmo sendo similares, alguns remédios podem apresentar contra-indicações em relação ao medicamento usado previamente”, informa um cardiologista sob condição de anonimato por manter relações amistosas com alguns laboratórios.
Já o Conselho Federal de Medicina diz que é de responsabilidade do Ministério da Saúde as providências a serem tomadas sobre o problema e reitera o “apoio aos legítimos interesses dos pacientes.”
Muitos portadores de doenças raras, contudo, reclamam também dos prejuízos materiais que sofrem em razão da retirada de alguns medicamentos do mercado. Não bastasse a angústia que sofrem, os pacientes precisam pagar consultas e exames médicos para substituir os produtos em falta.
Para o autor da proposta, é preciso disciplinar definitivamente a interrupção dos medicamentos de uso contínuo para que os brasileiros, como a sogra de Francisco, não sofram mais as consequências em decorrência da ganância da indústria farmacêutica. “Os fabricantes param de produzir determinados remédios por interesses comerciais em detrimento da saúde da população. É preciso mudar essa concepção o quanto antes e proteger os pacientes que, como nunca, merecem um sistema de saúde eficiente no Brasil”, conclui o deputado federal Jonas Donizette.
Os laboratórios procurados pela reportagem não responderam aos pedidos de entrevista até o fechamento da matéria.