O setor extrativista – de recursos naturais como petróleo, gás, água, minérios, pesca, florestas – é um dos mais propícios à corrupção em todo o mundo, em função de sua grande complexidade, da amplitude dos projetos e, assim, do desconhecimento da sociedade sobre o que realmente está sendo desenvolvido nessas atividades. A afirmação foi feita pelo professor-doutor alemão Peter Eigen, fundador e presidente da ONG Transparência Internacional, em palestra no último dia 17 na Fundação João Mangabeira (FJM), em Brasília.
O evento, promovido pela Fundação e o PSB, também trouxe a professora-doutora Gesine Schwan, cientista política e que concorreu por duas vezes (2004 e 2009) à Presidência da Alemanha pelo Partido Social-Democrata Alemão (SPD), para falar sobre Federalismo na Alemanha e na Europa. Confira a palestra: http://www.psb40.org.br/not_det.asp?det=4648
Peter Eigen, que é ex-diretor do Banco Mundial na África e conselheiro político de diversos governos africanos, veio ao evento da FJM falar sobre seu mais recente projeto – a Iniciativa Transparência Internacional na Indústria Extrativa (EITI), com o qual começa a mudar este cenário de corrupção comum ao setor. De acordo com ele, a diferença entre o que as empresas extratoras pagam aos governos de países detentores de recursos naturais e o que esses governos admitem a seus políticos e à sociedade ter recebido é brutal. Em casos como a Nigéria, ela chegou a 4 bilhões de dólares ao ano, revelou, “uma perversão do setor econômico gerando pobreza extrema também naquele país”.
Eigen apresentou a EITI como mais um instrumento na luta contra a corrupção à disposição da sociedade civil, a qual a entidade entende ser parte essencial para promover os avanços em determinados setores, a exemplo deste dos recursos naturais. “Há coisas que os governos, sozinhos, não teriam conquistado, nem o setor privado”, afirmou. “Graças a esse trabalho de antagonista da sociedade civil, porém em conjunto com a economia privada e os governos, é que nós já conseguimos alguns avanços nessa empreitada”.
De acordo com ele, a atuação da Iniciativa da Transparência Internacional na Indústria Extrativa é muito importante em países como o Brasil, que é rico em recursos naturais e, recentemente, ainda descobriu as gigantescas reservas de petróleo do Pré-Sal, que estão às vias de serem exploradas. “Isso também representa, certamente, grandes riscos para a sociedade civil brasileira, o meio ambiente do país, bem como riscos para uma política socialmente igualitária no Brasil”, alertou. “Além do risco da fuga de recursos naturais de seu território, que é algo que já afetou seriamente muitos países”.
Ambiente propício à corrupção
O especialista revelou que a EITI foi criada dentro da Transparência Internacional quando a organização percebeu que no setor da exploração dos recursos naturais também residiam enormes riscos para a corrupção. “Os valores movimentados e que precisam ser gerenciados por esse setor montam, todos, à soma de bilhões de dólares, há enormes instalações para, por exemplo, perfuração de petróleo, tubulações subterrâneas e subaquáticas, usinas hidrelétricas – uma complexidade imensa numa área onde, na verdade, poucas pessoas estão de fato entendendo o que acontece de importante”, apontou. “Isso tudo faz desse ambiente absolutamente propício e visado para a corrupção”.
E essa corrupção, revelou, está diretamente relacionada aos tomadores de decisões políticas sobre esses recursos naturais – recursos esses que pertencem à população. Mas, segundo o especialista, a corrupção também é uma grande tentação para os investidores do setor, então isso inclui e afeta empresas de todo o mundo. “Não devemos esquecer que em países como o Canadá e França até há pouco tempo a corrupção também acontecia quase que livremente. Na Alemanha, por exemplo, até 1999 a corrupção era não só permitida como, na verdade, era até incentivada, por meio de incentivos fiscais”, detalhou. “Empresas grandes como a Siemens, por exemplo, podiam pagar 10 milhões de dólares a um prefeito para obter deduções ilícitas do imposto de renda. Era uma situação escandalosa”.
Peter Eigen afirmou que muitas empresas que exploram os recursos naturais se beneficiaram durante décadas disso, porque a tentação em negociações com um pequeno país como a Guiné equatorial ou o Congo ou mesmo os países da Ásia é muito grande. Com alguns milhões de dólares eles podem corromper um ministro, um presidente do país, a fim de assegurar o acesso a enormes recursos naturais, revelou. A prática gerou distorções macroeconômicas chamadas de “doença holandesa”, porque os valores envolvidos são tão enormes que distorcem até mesmo os dados locais da economia, levando a prejuízos em outras áreas como, por exemplo, a valorização do câmbio nesses países.
“Essa combinação de perversão econômica e grande tendência e facilidade para a corrupção fez com que a maioria dos países detentores de recursos naturais tenha se tornado vítima de um terrível empobrecimento das suas populações, especialmente dos segmentos que não chegavam nunca à elite de governo”, destacou Peter Eigen. “Para evitar essa situação, países como o Brasil devem fazer de tudo para que, através da abertura de informações à sociedade, da transparência dos dados públicos, possam atingir a estabilidade com integridade nesse setor, evitando essas consequências negativas”.
Foram elas que levaram a Transparência Internacional e outras organizações não governamentais, como Global Witness e também outras ONGs menores, sobretudo sediadas em Londres, a desenvolver um sistema para começar a penetrar nesse setor enorme e tão sujeito à corrupção, dando origem a EITI.
Divulgar o que se paga
A ideia inicial foi pedir às empresas que divulgassem todos os valores pagos aos governos dos países onde exerciam suas atividades exploratórias, incluindo taxas, impostos, royalties, enfim e qualquer outro tipo de pagamento obrigatório. “Ficamos muito entusiasmados quando grandes empresas como a BP e a Shell decidiram apoiar essa iniciativa e divulgar os seus pagamentos, porque vimos que perceberam a importância da transparência, da abertura desses dados para atuar com mais estabilidade, honestidade e previsibilidade nesse setor”, disse o especialista.
Entretanto, as próprias empresas enfrentaram fortes resistências ao tentar colocar em prática essa publicação. O diretor-geral da BP relatou a Eigen que, quando tentou implantar a iniciativa na Angola, o governo avisou que se a empresa publicasse o que estava pagando ao país estaria quebrando uma cláusula de confiança dos contratos e, dessa forma, eles não iriam mais renovar as suas licenças de exploração. Em função disso, a BP não pode implementar a medida naquele momento.
Mesmo assim, a EITI seguiu defendendo a ideia do Publish what you pay – publique o que você paga – e aos poucos foi conseguindo chegar aos governos de alguns desses países, que “passaram para o nosso lado”. Na Nigéria, por exemplo, onde foi detectada uma diferença de 4 bilhões de dólares entre o que as empresas pagavam e o que o governo dizia ter recebido, um novo Presidente anunciou, durante as comemorações do 10º aniversário da Transparência Internacional, em 2003, que no seu país as exploradoras externas não apenas iriam passar a publicar esses gastos, como também seriam obrigadas a fazê-lo. Ele promoveu uma mudança nas leis angolanas e tornou a publicação uma exigência legal, tanto para as empresas quanto para o governo.
Foi um avanço gradual e que só obteve sucesso, salientou o Eigen, porque contou com a participação efetiva da sociedade civil na definição de todos os processos em que se coletavam esses números e também na forma como esses processos seriam definidos. “Não apenas nós tínhamos agora os dados das empresas, mas também a sociedade civil estava participando desse monitoramento – criamos um grupo múltiplo na Nigéria, constituído em um terço de ONGs, um terço de representantes do governo e um terço de empresas privadas. Os três segmentos coletavam os dados e alimentavam o sistema”, detalhou.
Iniciativas bem sucedidas da EITI como essa fizeram surgir um movimento que atualmente já envolve 40 países ricos em recursos naturais. Ao menos 23 deles já estão em conformidade com a nova prática, ou seja, já entregaram os relatórios que foram produzidos por esse grupo multi interesse, os quais foram validados por especialistas designados por um grupo internacional – um conselho composto por 20 pessoas de diversos governos, tanto dos países produtivos quanto dos consumidores, grandes e pequenos, além de representantes de mais de 400 ONGs. “Eu presidi esse conselho e nós zelamos para garantir que os grupos multi interesse nos países detentores de recursos naturais tivessem sempre uma representação consistente da sociedade civil e, também, mantivessem as regras ao produzir os seus relatórios, que depois seriam certificados”, testemunhou Eigen.
Monitoramento da sociedade civil
Esse é, em resumo, explicou o professor, o trabalho da EITI e, embora muitos não entendam a princípio a importância dessa abordagem pragmática da publicação dos valores investidos, ela é enorme. “Justamente porque faz com que os governos e as grandes empresas sentem com a sociedade civil em volta de uma mesma mesa e, conjuntamente, decidam como executar esse mandato, enfim, consigam estabelecer as bases para uma melhor governança no setor de recursos naturais extrativos do seu país”, ressaltou.
A entidade verificou ainda que era pela primeira vez também que estavam sendo conhecidas, pelos próprios parlamentares desses país, as enormes somas que os seus governos vinham recebendo de grandes grupos econômicos. Na Nigéria, por exemplo, a cada ano mais de 50 bilhões de dólares eram pagos à elite poderosa do governo, que desviava grande desses recursos e muitas vezes gastava em projetos de prestígio apenas pessoal, enquanto a maior parte dos 50 milhões de nigerianos vive na miséria. “Os parlamentares nunca souberam o volume de recursos que o governo recebia, dinheiro que muitas vezes não podia nem ser aproveitado nos orçamentos, e pela primeira vez entendiam o tamanho do que a elite de poder estava assumindo sozinha”, revelou.
Em Camarões, Peter Eigen chegou a ouvir de um presidente, quando ainda trabalhava no Banco Mundial, que ele precisava achar um jeito de fazer com que os seus ministros não soubessem o quanto estava recebendo desses grupos econômicos. “Disse que eles eram muito ‘gananciosos’ e iriam querer esse dinheiro para construir escolas, hospitais, estradas. Quando respondi que era essa a intenção de um país, ao vender seus recursos naturais, ele me acusou não conhecer a África e não entender como as coisas aconteciam por lá”, comentou. “Era essa a atitude em voga e completamente aceita, a qual nós estamos tentando eliminar com EITI”.
Como a organização também precisasse de apoio financeiro para se estabelecer, criou-se no Banco Mundial, com recursos dos países mais ricos, um fundo fiduciário de 40 milhões de dólares, o qual viabilizou a criação da secretaria própria, com sede em Oslo, Noruega, e a contratação de 10 pessoas que cobrem o trabalho nos 40 países abrangidos atualmente. Com essa estrutura pronta, Peter Eigen diz que agora a EITI começando também a ser mais ambiciosa nos relatórios que exige. Todos os contratos, até de investimentos, tem que ser publicados.
A multinacional brasileira Vale do Rio Doce, exemplificou, que participa da EITI e está representada até no Conselho da entidade (bem como a Petrobras), passou a exigir que seus contratos com a Guiné, onde adquiriu concessões para extrair minério de ferro, fossem divulgados. “Isso nunca tinha sido feito antes mas, após a insistência da Vale, o governo de Guiné concordou em publicar todos os seus contratos. Uganda e Gana também estão começando a publicação, assim, pouco a pouco essas normas estão sendo implementadas, um padrão está sendo criado para o acesso a esses dados, o que era impensável até poucos anos atrás”, comemorou o professor. O principal ingrediente, reforça ele, é o diálogo e cooperação constantes entre os governos, as empresas e as organizações da sociedade civil.
Ao mesmo tempo da iniciativa EITI, os Estados Unidos também votou uma lei obrigando todas as empresas que negociam nas Bolsas de Valores dos Estados Unidos a divulgar esse tipo de dados. Mais que isso: a nova lei obriga que cada projeto dessas empresas tenha seus dados divulgados individualmente, impedindo a prática antiga de misturar os que deram prejuízo ao bolo e, assim, reduzir a carga fiscal. E, além das empresas terem que prestar contas, os governos que recebem os seus investimentos também precisam publicá-los. A medida fortaleceu o trabalho da entidade. “Já não era mais apenas algo que nós estávamos propondo, mas uma obrigação”, explicou Peter Eigen.
Segundo ele, falta agora os concorrentes que não são dos Estados Unidos também serem obrigados a divulgar seus dados. Mas a União Europeia editou recentemente uma normativa que estabelece as mesmas exigências e obriga as empresas a seguir todas as diretrizes dessa lei norte-americana, com França, Inglaterra e Noruega já tendo declarado que seguirão o exemplo. No Canadá e Austrália alguns setores começam a introduzir regras semelhantes. “E tudo isso foi originado por esse trabalho em cooperação que eu chamo de Triângulo Mágico – sociedade civil, governos e empresas. É um padrão que no mundo todo vai fazer com que a corrupção entre lideranças políticas seja amarrada até ser eliminada”, acredita.
O Brasil não aderiu a EITI
Peter Eigen lamentou apenas, ao final da palestra, que o governo brasileiro venha se recusando a participar dessa iniciativa da EITI. “Ao contrário das empresas multinacionais brasileiras, que já compreenderam o quanto é importante ter um sistema claro em que todos estão obrigados a publicar seus resultados”, criticou. O professor registrou que, quando a Presidente Dilma promoveu a iniciativa de contas abertas em seu governo, ficou muito contente porque pensou que, com certeza, então, o Brasil participaria da EITI. “Entretanto, nada mais foi dito a cerca disso”.
Ele anunciou que em novembro próximo a entidade irá promover uma conferência específica para a América Latina, em que a Colômbia e outros países participantes da EITI irão debater e avaliar que tipo de resultados já conseguiram observar seus próprios setores extrativistas. “Mas o Brasil, um país dessa dimensão e importância econômica, riquíssimo em recursos naturais extrativistas, ainda não atendeu ao nosso convite”, preocupa-se o professor. “É urgente que o Brasil participe e se associe a essa iniciativa, para pensar conjuntamente essas normas em seu continente”.
Ele fez questão de destacar que o trabalho da EITI ainda é um trabalho em andamento e que, portanto, a cada ano pode melhorar, novas regras podem ser pensadas e implementadas, ou seja, está aberto a inovações e melhoramentos. “Um país como o Brasil seria um parceiro maravilhoso, por isso expresso aqui a minha esperança de que o governo também participe da nossa iniciativa, assim como a Vale e a Petrobrás já têm feito”, apelou.
Segundo ele, não é só no petróleo e mineração, mas também na saúde, setor hídrico e no meio ambiente a parceria do Triângulo Mágico pode encontrar soluções para um monitoramento independente da sociedade civil sobre os recursos públicos.
“Somente isso levará a um bom progresso, que é o inclusivo. Temos um mundo que é injusto, onde há muita pobreza, miséria demais e muito desespero, com milhões de crianças morrendo de doenças banais antes de completar os 5 anos de idade. Doenças que poderiam ser facilmente evitadas se não tivéssemos esse processo de empobrecimento no mundo, acirrado pela corrupção”, concluiu.