A produção cultural e artística no Brasil definha com os graves efeitos do conservadorismo e da gestão autoritária do governo de Jair Bolsonaro.
A asfixia na cultura passa pela nomeação de nomes ideológicos e desqualificados para postos-chave da administração estatal que cuidam do incentivo às artes e do cancelamento de editais em razão do conteúdo dos filmes produzidos. O setor na gestão de Bolsonaro também sofre com a diminuição expressiva dos editais da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e o esvaziamento da Lei Rouanet.
Uma das primeiras ações de Bolsonaro na Cultura foi rebaixar a pasta de ministério a secretaria especial. Ela passou para o Ministério da Cidadania, comandada então pelo médico Osmar Terra. Mas não ficou aí. Depois, o órgão foi transferido para o Ministério do Turismo, mudança que só se completou com seis meses de atraso.
Não bastasse o rebaixamento, a pasta padeceu do troca-troca em seu comando. A atriz Regina Duarte foi a quarta a chefiar a secretaria e a segunda a se manter mais tempo no cargo – menos de três meses – , depois de Henrique Pires. Com a saída da atriz, o posto continua vago, e um dos cotados para ocupá-lo é o ex-ator de “Malhação”, Mário Frias, que se ofereceu para o cargo.
Enquanto ocupou a pasta, Regina se envolveu mais em polêmicas do que em projetos para a cultura. A atriz foi criticada por artistas ao não prestar homenagens a grandes nomes da arte brasileira que morreram durante a gestão dela, como o cantor e compositor Moraes Moreira, o escritor Rubem Fonseca, o compositor Aldir Blanc e o ator Flávio Migliaccio. Em entrevista à TV CNN Brasil, a então secretária especial de Cultura minimizou os casos de tortura ocorridos durante o regime civil-militar brasileiro (1964-1984) e cantarolou música da Copa do Mundo de 1970, associada à propaganda do governo da época.
Na entrevista, durante a qual pareceu não estar ciente da realidade, reclamou das cobranças de opositores ao presidente Bolsonaro sobre iniciativas autoritárias de seu governo e a participação dele em manifestações que pedem a volta do regime militar e o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal.
“Gente, vamo embora, né, vamo embora pra frente, ‘pra frente, Brasil, salve a Seleção; de repente, é aquela corrente pra frente’. Não era bom quando a gente cantava isso?”, entoou Regina Duarte, aos risos.
“É que houve tortura, secretária. Houve censura à cultura”, reagiu, em tom grave, o jornalista Daniel Adjuto, que a entrevistava.
E ela replica: “Bom, mas sempre houve tortura. Meu Deus do céu… Stalin, quantas mortes? Hitler, quantas mortes? Se a gente for ficar arrastando essas mortes, trazendo esse cemitério… Não quero arrastar um cemitério de mortos nas minhas costas e não desejo isso pra ninguém. Eu sou leve, sabe, eu tô viva, estamos vivos, vamos ficar vivos. Por que olhar pra trás? Não vive quem fica arrastando cordéis de caixões”.
O desempenho desnorteado da atriz deu início a um processo de fritura no cargo. Regina Duarte foi exonerada da pasta sob o argumento de que “precisaria estar mais perto da família”. Para isso, ela “ganhou” como prêmio de consolação a gerência da Cinemateca brasileira, responsável por preservar um acervo com mais de 250 mil rolos de filmes e um milhão de documentos.
Desqualificados
O mais recente caso de nomeação de um perfil que nada tem a ver com o setor para o qual foi designado provocou o encaminhamento de uma ação popular pelo Ministério Público Federal no Rio de Janeiro (MPF-RJ) à 28ª Vara Federal nesta quinta-feira (28).
A ação pede a suspensão da nomeação e posse de Larissa Rodrigues Peixoto Dutra para o cargo de presidente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Larissa assumiu a presidência do Iphan após o órgão ficar cinco meses acéfalo, desde a exoneração de Kátia Bogéa.
Para o MPF, a nomeação é inválida porque ela não atende aos requisitos estabelecidos em decretos, que exigem dos nomeados “perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo”, além de experiência profissional mínima de cinco anos em atividades correlatas e título de mestre ou doutor na área de atuação.
Segundo apurou o MPF, Larissa Rodrigues Peixoto Dutra é graduada em Turismo e Hotelaria pelo Centro Universitário do Triângulo e cursa atualmente pós-graduação lato sensu em “MBA Executivo em gestão estratégica de marketing, planejamento e inteligência competitiva” na Faculdade Unileya.
Para o órgão federal, Larissa não possui formação acadêmica compatível com o exercício da função, uma vez que não tem graduação em História, Arqueologia, Museologia, Antropologia, Artes ou outra área relacionada ao tombamento, conservação, enriquecimento e conhecimento do patrimônio histórico e artístico nacional.
No início do mês, o governo incorreu na mesma prática observada no IPHAN, designando para presidente-substituto da Fundação Nacional de Arte (Funarte) alguém sem nenhuma experiência no setor. O ex-assessor do vereador Carlos Bolsonaro, Luciano da Silva Barbosa Querido atuou entre 2002 e 2017 no gabinete do filho número 02 do presidente, na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Sua função era cuidar da “parte de informática” do gabinete, como designer gráfico, web designer e banco de dados e mídias sociais” do gabinete.
Ao mesmo tempo, em um vai-e-vem interminável, a presidência do órgão voltou a ser ocupada pelo maestro Dante Henrique Mantovani, o que defendeu em um vídeo publicado no ano passado que rock levava ao satanismo e aborto. Mantovani foi renomeado após estar afastado por dois meses, em um processo de desgaste da ex-secretária especial de Cultura Regina Duarte, autorizado pelo próprio Bolsonaro. A ex-secretaria havia exonerado Mantovani no primeiro dia em que começou no cargo.
Mantovani havia sido nomeado pela primeira vez no comando da Funarte pelo antecessor de Regina, Roberto Alvim, que se tornou conhecido pelo discurso que imitava Joseph Goebbels, ministro de Propaganda da Alemanha nazista, ao anunciar o lançamento de um prêmio cultural. Alvim foi demitido após grande repercussão negativa do espisódio.
A Fundação Palmares também não escapou à aparente desorientação do governo. Bolsonaro indicou Sérgio Camargo, que se projetou ao afirmar que a “escravidão foi um processo lucrativo para os africanos”, defendeu o fim do Dia da Consciência Negra e atacou lideranças negras e o próprio Zumbi dos Palmares. Ele acabou tendo a posse anulada pela 18ª Vara Federal de Sobral (CE). A medida foi tomada devido ao risco apontado como “rota de colisão com os princípios constitucionais da equidade, da valorização do negro e da proteção da cultura afrobrasileira”. Atendendo a um pedido da Advocacia-Geral da União (AGU), o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), João Otávio de Noronha, no entanto, reverteu a decisão e liberou a nomeação de Camargo.
Nesta quarta-feira (27), o Ministério Público Federal/RJ, por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, anunciou que vai apurar suposto “desvio de finalidade” na criação de um “selo não-racista”, que foi anunciada por Camargo, no início da semana.
Em publicação nas redes sociais, Camargo afirmou que o selo teria por objetivo “restaurar a reputação de pessoas que injusta e criminosamente foram tachadas de racistas em campanhas de difamação e de execração pública promovidas especialmente pela esquerda.” Entretanto, de acordo com o artigo 1º, da lei de 1988 que instituiu o órgão, a fundação tem, essencialmente, o dever de “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”.
Segundo o MPF, o anúncio feito por Sérgio Camargo poderia, em tese, enquadrar o projeto no conceito de “desvio de finalidade” — quando um gestor público age ou decide fora das finalidades estabelecidas pela lei.
Desestruturação do cinema nacional
O governo de Jair Bolsonaro também está desestruturando o funcionamento da Agência Nacional do Cinema (Ancine), órgão da cultura que vinha impulsionando cada vez mais a indústria cinematográfica nacional desde 1990. Representantes do audiovisual brasileiro preveem um colapso do setor no médio prazo porque a agência não libera a totalidade dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual desde 2018.
Entidades de defesa do audiovisual dizem que há atrasos na liberação de cerca de R$ 725 milhões do FSA relativos ao ano passado e de cerca R$ 325 milhões já aprovados para este ano. Ainda há um passivo de mais de R$ 1 bilhão herdado pelo governo com recursos represados desde 2016 e que já deveriam ter sido liberados, uma vez que os projetos que receberiam esses recursos já foram selecionados em editais.
O órgão foi criticado por Bolsonaro no ano passado. Sem disfarçar seu instinto autoritário, ele chegou a dizer que se não pudesse haver filtros em conteúdos patrocinados pela instituição, o governo extinguiria a Agência Nacional do Cinema.
Sob coordenação do deputado socialista Tadeu Alencar (PE), deputados e senadores reagiram com o lançamento da Frente Parlamentar Mista em Defesa do Cinema e do Audiovisual Brasileiros. Segundo Alencar, a iniciativa ocorreu no momento em que “a cultura brasileira é alvo de diversos ataques desde a chegada do atual governo, inclusive com a extinção do Ministério da Cultura”.
Em alusão ao filme nacional premiado pelo júri no Festival de Cannes deste ano, Alencar batizou o grupo de “Frente Bacurau”. “Será uma trincheira de luta e de grande ativismo em favor de um Brasil mais justo e melhor”, disse.
Censura
O governo Bolsonaro retaliou obras com temas que desagradavam a ala bolsonarista, vetando trabalhos que falavam sobre regimes autoritários, sexualidade e questões de gênero.
Em agosto do ano passado, cancelou um edital da Ancine que incluía incentivo a projetos para TVs públicas com temática LGBT. A este ato, seguiram-se uma série de outras medidas de censura que atingiriam também os programas de incentivos das empresas estatais, com o cancelamento de espetáculos como “Abrazo”, da companhia Clowns de Shakespeare, e “Gritos”, da Dos à Deux.
O primeiro secretário de Cultura do governo Bolsonaro, Henrique Pires, pediu seu afastamento lembrando o cancelamento do edital da Ancine. “Para ficar e bater palma para censura, prefiro cair fora”, ele disse ao pedir a exoneração.
Lei Rouanet
Desde as eleições, Bolsonaro atacava a Lei Rouanet, questionando os subsídios públicos a produtores. Hoje, chamada pelo governo de Lei de Incentivo à Cultura, teve o teto reduzido de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão por projeto. Os principais prejudicados foram os produtores de espetáculos musicais. A alteração foi duramente criticada pelo setor. Na prática, produtores dizem que as empresas deixaram de usar a lei, sentindo insegurança jurídica. Isso se refletiu no volume de recursos captados pela lei.