“No século 21, deter a propriedade e o efetivo poder dirigente sobre obras, bancos de dados e outros ativos informacionais será tão importante para a posição econômica de um país quanto foi deter um parque industrial pesado no século 20.” Essa é a análise do advogado especialista em economia da cultura Cláudio Lins de Vasconcelos, que concedeu uma entrevista exclusiva para o site Socialismo Criativo. Sócio-fundador do escritório Lins de Vasconcelos Advogados, atua há mais de 20 anos com segmentos criativos em questões regulatórias e relacionadas à aquisição, gestão e transferência de direitos de propriedade intelectual. Entre outras posições, foi Secretário Nacional de Economia da Cultura do extinto Ministério da Cultura. É autor de diversos trabalhos publicados no Brasil e no exterior, entre eles o livro “Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação”, atualmente na segunda edição. Mineiro de Belo Horizonte, ele é doutor pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e mestre pela Universidade de Notre Dame. Confira a entrevista.
Você considera importante um novo marco legal para os setores que integram a Economia Criativa? Um marco legal capaz de amparar a estimular novas formas de produzir nas áreas tributárias, previdenciárias, trabalhistas, de taxas alfandegárias e propriedade intelectual de forma a libertar as atividades criativas do monopólio da mídia e do transporte de dados?
Sem dúvida. Um marco legal apropriado, que leve em conta peculiaridades setoriais e objetivos estratégicos, é um pré-requisito para o desenvolvimento de qualquer atividade econômica. Não há por que pensar que seria diferente com a chamada “economia criativa”. Note-se, antes de tudo, que estamos falando de um setor gigantesco, que merece toda nossa atenção. No final de 2015, a Ernst & Young estimou que as atividades classificadas pela UNESCO como culturais ou criativas movimentavam US$ 2,25 trilhões por ano, globalmente. Se fossem um país, formariam a oitava economia do mundo, atrás dos US$ 2,71 trilhões da Índia e à frente dos US$ 2,07 trilhões da Itália. No Brasil, há uma lamentável escassez de dados oficiais a respeito, mas estimativas apontam que a economia criativa agrega algo entre 1% e 3% ao PIB, a depender dos segmentos considerados, o que em qualquer caso é muito. Um marco regulatório bem pensado pode ser um indutor importante de desenvolvimento setorial, com impactos macroeconômicos positivos. Com a Lei da TV Paga (Lei 12.485/2013), por exemplo, pela primeira vez na história os produtores audiovisuais brasileiros passaram a ser titulares dos direitos de propriedade intelectual sobre seus filmes. Isso é bom para os produtores, mas é bom para o país também, pois se não fosse esta lei, tais direitos provavelmente seriam transferidos na origem para uma empresa estrangeira, que passaria a ser a titular das obras. Ou seja, apesar de a obra ser produzida no Brasil, o potencial de remuneração, que é concentrado nos direitos de exploração econômica pelo prazo de proteção autoral, seria transferido para outro país. No século 21, deter a propriedade e o efetivo poder dirigente sobre obras, bancos de dados e outros ativos informacionais será tão importante para a posição econômica de um país quanto foi deter um parque industrial pesado no século 20. Resumindo: regulação importa. Se for bem pensada, ajuda; se for malfeita, atrapalha. Desregulação completa não existe.
No século 21, deter a propriedade e o efetivo poder dirigente sobre obras, bancos de dados e outros ativos informacionais será tão importante para a posição econômica de um país quanto foi deter um parque industrial pesado no século 20.
Você considera importante medidas que tenham impacto tributário nos empreendimentos criativos, como, por exemplo, reduzir taxas de importação de materiais de pesquisa e inovação, propiciar linhas de créditos especiais em bancos públicos e privados?
Sim, muito importante. Outro dia vi um exemplo interessante vindo da Islândia, país que acaba de aprovar um programa de incentivo pelo qual o governo paga metade dos custos de gravação de artistas de qualquer nacionalidade que decidam produzir seus álbuns em estúdios islandeses. E por quê? A razão mais óbvia – atrair clientes para estúdios locais – é apenas uma pequena parte da explicação. Na verdade, trata-se de uma forma inovadora de adquirir propriedade intelectual. Ao gravar na Islândia, o artista deixa lá um fonograma islandês. Não importa se ele ou ela é um astro pop americano, britânico ou brasileiro. Independentemente dos direitos autorais sobre as músicas, os direitos patrimoniais sobre as gravações em si, que são os fonogramas, ficarão com um produtor fonográfico na Islândia. Toda vez que essas gravações forem executadas no Spotify, Deezer, rádios e canais de TV de todo o mundo, uma parte da receita irá para a Islândia. Alguns desses fonogramas serão grandes sucessos, clássicos eternos, e assim continuarão gerando receita por décadas a fio. Para a Islândia. Mesmo que não haja um único islandês entre os compositores e intérpretes. O que este exemplo mostra é que é possível pensar em diversas formas de apoiar o desenvolvimento do setor. Incentivos fiscais e políticas de fomento são fundamentais, mas linhas de crédito especiais ou isenções para importação de equipamentos podem ser muito úteis também, desde que se se saiba de quanto se está abrindo mão e que tipo de retorno se espera receber em troca. No fundo, o raciocínio é o mesmo aplicável a qualquer programa de fomento setorial, em qualquer indústria. Com a vantagem de que, na cultura, além – e acima – do retorno econômico, há o que podemos chamar de “retorno civilizatório”, ou seja, aquela dose a mais de educação e cidadania que sempre fica após um filme, um livro, uma exposição ou um concerto. E convenhamos: estamos precisando desesperadamente de cada dose disponível.
Como é possível garantir a defesa dos valores do Trabalho, de trabalhadores e trabalhadoras para que o capital humano, criativo, não signifique apenas lucros para as grandes empresas da economia criativa? Como garantir novas oportunidades de inserção social e redução das desigualdades? Como construir uma comunidade criativa, não apenas uma economia criativa?
Essa pergunta é difícil, pois a relação entre capital e trabalho está mudando muito rapidamente em todos os setores e tende a mudar ainda mais com o avanço tecnológico. Acho que a resposta passa pela organização das categorias profissionais em associações fortes, que devem tomar consciência do papel que seus associados exercem na cadeia produtiva da cultura, valorar essa contribuição e viabilizar as condições para que assumam uma posição mais assertiva nas negociações que envolvam o produto de seu trabalho criativo. Em relação à que vigorava no mundo pré-internet, a estrutura do mercado de mídia do século 21 pode até ser mais diversificada, mas não menos concentradora. Muitos dos conglomerados de mídia do século 20 migraram para modelos de negócios digitais e novos gigantes surgiram, mas a tendência de concentração segue a mesma. Quantos portais de vídeo online você conhece? Quantas plataformas de streaming de música? Quantas redes sociais efetivamente globais? O quadro de concentração não mudará no curto prazo. Por outro lado, essa mesma internet permite que artistas e produtores que não queiram ou não consigam se colocar na grande mídia busquem formas relativamente autônomas de atingir seu público. Eventualmente, conseguirão e podem com isso atrair o interesse comercial da grande mídia, mas aí sua posição negocial já estará fortalecida.
A indústria criativa é a mais dinâmica economicamente e mesmo em recessão cresceu o dobro ou até o triplo do que a economia tradicional. Ainda assim, o fluxo de investimentos públicos e privados continua sendo dirigido à indústria tradicional e para commodities. Como impulsionar uma mudança de visão estratégica e a adoção de um eixo de desenvolvimento baseado na economia criativa para o Brasil?
Investir em produção cultural é investir em uma das poucas áreas intensivas em capital intelectual em que o Brasil é competitivo internacionalmente. Pense em música. Tirando Estados Unidos e Reino Unido, que são os donos da língua franca de nosso tempo, que país tem uma produção mais relevante que o Brasil no último século, em termos de música popular? Ouve-se música brasileira no mundo todo, há muito tempo, com uma diversidade impressionante, de Jobim a Teló. Para a Alemanha, competir com o Brasil em música popular seria como o Brasil competir com a Alemanha em semicondutores. Só que nunca levamos a sério essa atividade, do ponto de vista estratégico. Nunca nos esforçamos para manter aqui os direitos de propriedade intelectual ou tivemos frente à música a atitude que os norte-americanos tiveram em relação ao cinema, por exemplo, usando a qualidade claramente acima da média de seu produto como forma de afirmar sua soberania cultural no mundo. Além de ser uma vocação nacional, as atividades criativas têm baixo impacto ambiental e dependem visceralmente do trabalho humano, duas vantagens incalculáveis em face da ameaça do aquecimento global e do avanço da inteligência artificial. Em suma, para um país como o Brasil, não faz o menor sentido relegar as indústrias criativas ao segundo plano, seja pelo prisma econômico, seja pelo geopolítico. Aí está uma de nossas melhores chances para nos livrarmos da dependência estrutural das commodities que, no aspecto econômico, é o pilar fundamental de nosso subdesenvolvimento.
Além de ser uma vocação nacional, as atividades criativas têm baixo impacto ambiental e dependem visceralmente do trabalho humano, duas vantagens incalculáveis em face da ameaça do aquecimento global e do avanço da inteligência artificial.
Com relação ao Design Nacional, como impulsioná-lo e fortalecê-lo?
O design brasileiro conta com projeção internacional em áreas como a moda e a arquitetura, mas não me parece que haja um diálogo permanente entre o design nacional e a indústria, a ponto de conferir aos produtos locais uma certa identidade visual – uma “marca”, em sentido figurado –, como talvez seja o caso da Itália ou da Alemanha. Talvez até exista essa identidade, mas sem qualquer apropriação por parte da política industrial. O design é, por definição, um tipo de criação intimamente atrelado à inovação industrial. Está na interseção entre expressão e utilidade. Uma explicação possível para esse aparente afastamento entre design e indústria no Brasil é o fato de que, no mercado externo, o país é basicamente fornecedor de commodities, um tipo de produto para o qual o design é de todo irrelevante. A moda, campo no qual o design brasileiro assume posição de destaque, é uma exceção. Este é um tema que demanda mais discussão no Brasil. Existe algo como um “design brasileiro” que vá além de uns poucos segmentos, muito bem definidos, como moda e arquitetura? Se não, devemos buscar algo assim? São questões em aberto. O fato é que até uma garrafa de água mineral parece ter pretensões estéticas em nossos dias, como lembraram Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (A estetização do mundo: Viver na era do capitalismo artista. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Cia. das Letras, 2013), então me parece que oportunidades surgirão para o design brasileiro. Importante notar que, além da estética, o design carrega uma mensagem, que remete ao seu contexto cultural. Em outras palavras, para cuidar do design brasileiro é preciso cuidar também da imagem do país. Mas essa é outra discussão.
Site Socialismo Criativo