“Bom dia, com licença, veja o que lhe mandou o Senador Cristovam”. A secretária me entregou um canudo de papel, nele, uma charge do Angeli. Olhei a data, não havia. Olhei para as figuras no cartum, do lado direito, um militar corpulento brandindo um cassetete, no alto à esquerda, um fac-símile, como se dizia antigamente, anunciando:
“Exilada poderá circular por todo o país
Brasília (sucursal) – Ao ser ouvida informalmente, no Dops de Brasília, a exilada Janete Góes Capiberibe recebeu garantias do diretor regional daquele órgão, Paulo […], que poderá circular livremente pelo território nacional […]”.
Triste lembrança. Quase apagada. Mas, naquela terça-feira de um ano insólito, os traços do conhecido cartunista Angeli, deixaram-me à flor da pele. Ano em que nossa seleção, em plena copa do mundo, tomou de 7 X 1 da Alemanha. Ano em que uma tragédia retirou da cena política o promissor líder socialista Eduardo Campos. Além disso, estávamos em véspera de eleições gerais no país, com crise batendo na porta. A remexida no baú do tempo me deixou atônito, as visagens do passado invadiram meu gabinete de Senador da República naquela manhã de agosto de 2014.
Passei alguns minutos sem tirar os olhos da charge pensando nos dias sombrios do passado, parcialmente soterrados pela democracia. Tempo de incertezas, em que uma mulher, acompanhada de três crianças pequenas, imaginando uma coisa na partida, depara-se com o inusitado na chegada. Sequestrada com seus três filhos ao descer do avião no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, vinda de Moçambique. Vinte e quatro horas depois, reaparece em Brasília sendo ouvida “informalmente” pelo DOPS ou, Departamento de Ordem Política e Social ou melhor, um apêndice do brutal sistema repressivo do regime.
Alguns minutos depois, a secretária retorna ao gabinete, dessa vez sem pedir licença, anuncia-me o Senador Cristovam na linha. Ainda sob a surpresa da revelação, agradeci-lhe comovido. Perguntei-lhe como havia descoberto aquela reminiscência, e se saberia me dizer o nome do jornal e a data da publicação. Não, sua assessoria não lhe havia dado maiores detalhes. Comentou sobre o drama, a coragem de Janete ao enfrentar a tormenta, e queria saber mais sobre aquele episódio que Angeli ironizou e registrou para a história. Ficamos alguns minutos pendurados ao telefone. Falávamos das incertezas do cotidiano fora da democracia. De repente, caiu a ficha: passados tantos anos, e mesmo com tantas leis assegurando direitos, as violações continuam, e atingem brutalmente os pobres, os que vivem apartados, distantes dos templos de consumo, os shopping center, esses, instalados aqui e acolá, nos grandes desertos de concreto.
Não lembro a propósito de quê, mas em algum momento fiz referência ao morro da Rocinha, zona sul do Rio de Janeiro, onde se aglomeram mais de cem mil almas. Cristovam imediatamente lembrou da tragédia de Amarildo. Seis filhos, negro, ajudante de pedreiro, nascido e criado por ali, conhecido e reconhecido pela vizinhança como gente boa. Amarildo estava em sua casa no alto do morro, curtia o domingão na companhia dos filhos e da mulher, confundido com traficante, foi arrancado de casa, preso por policiais militares. Foi levado em direção à sede da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha, poucas horas depois, desapareceu. Isso mesmo! Sumiu pelas mãos dos homens da lei, aqueles tinham obrigação de protegê-lo, mas que o mataram, e desapareceram com seu corpo.
Muito tempo antes desse fatídico 14 de julho de 2013, em que Amarildo foi sequestrado e desaparecido, Rubens Paiva, pai de cinco filhos, engenheiro civil, empresário e deputado federal, morador do Leblon, na zona sul carioca, teve seu dia trágico. Aconteceu na quarta-feira, 20 de janeiro de 1971, feriado consagrado a São Sebastião, patrono da cidade do Rio de Janeiro. Ele acabara de retornar da praia, os filhos menores ainda dormiam, conversava no quarto com Eunice, sua mulher, quando ouviu alguém bater, adiantou-se para abrir, deparou-se com os olhos esbugalhados de uma das empregadas da casa, que com a voz trêmula num quase sussurro lhe disse: “têm umas visitas estranhas querendo falar com o senhor”. Ao entrar na sala, deu de cara com quatro metralhadoras apontadas em sua direção: “mãos para cima e não se mova! você está preso!”. Em seguida o algemaram e o levaram. Até hoje, do seu corpo não se tem notícia.
Cenas de ontem e de hoje, quanta semelhança. Isso me faz pensar que os sequestradores e torturadores do presente têm onde se inspirar. “Ora!”, dirão eles: “se aos que, no passado, prenderam, torturaram, mataram e sumiram com o corpo de gente importante como deputados, padres, artistas, jornalistas, professores etc., nada aconteceu de ruim” – pelo contrário, foram cercados de mimos e privilégios, por isso, ainda hoje, notáveis torturadores do passado são saudados como heróis. “Logo”, concluirão eles: “matar e sumir com o corpo negro de um anônimo ajudante de pedreiro, morador da periferia, é o de menos. Cristovam lembrou que, diferentemente de outros países da América Latina, que na transição democrática fizeram o acerto histórico com seus torturadores, colocando-os no banco dos réus e punindo-os exemplarmente, no Brasil não houve nada disso, essa gente ficou impune e protegida, e suas práticas criminosas fizeram escola, atravessando o tempo e chegando aos nossos dias.
No Senado da República, na terça e na quarta-feira tudo acontece, claro, tudo ao mesmo tempo. São dias tensos e intensos, efervescentes e estressantes. Ora, se Deus criou o mundo em seis dias e consagrou o sétimo para descansar, como nós, simples mortais, ainda que senadores de um país convencido que Deus é brasileiro, podemos comprimir a semana em dois dias? O resultado disso não é bonito de se ver, uma agenda pra enlouquecer, impossível de ser cumprida. Em meio a essa jornada esquizofrênica parei pra pensar, queria entender por que precipitamos nossa volta ao Brasil.
Saudade? Sim, saudade, palavra sem tradução direta em outras línguas. Sentíamos que algo nos faltava, vez por outra um vazio indefinido nos entediava. É que já levávamos nove anos distantes dos nossos, da família e dos amigos. Sentíamos falta da música, do jeito alegre de viver do nosso povo, do calor abafado e do cheiro úmido da nossa cidade, do banho nas águas barrentas do rio Amazonas, do açaí (do grosso) com farinha baguda transbordando pelo beiço da tigela. E, do tacacá da Bebé, democraticamente servido pela ordem de chegada em sua banca, ao lado da igreja de São José, na praça da Matriz de Macapá. Era um ritual de cores e odores. Primeiro ela colocava no fundo da cuia a goma grudenta e transparente feita de tapioca, em seguida o caldo amarelo do tucupi, fumegando, temperado com alho e chicória, o vapor encharcava o ar com um cheiro excitante, em seguida, acrescentava o camarão seco e o jambu, e perguntava: com pimenta ou sem pimenta? Hum! Delicia! Só de lembrar dá água na boca. A saudade nos fazia delirar.
O clima de alegria daquele final de ano em Maputo não era sem razão, as noticias do Brasil que nos chegavam já não eram tão ruins como antes, davam conta da distensão política em curso, que por definição dos militares, seria lenta e gradual, assim como restrita seria a anistia que o regime, ainda que profundamente desgastado, estava disposto a ceder diante da pressão popular. Nosso primeiro ano, 1978, vivendo em Moçambique, foi diferente, estávamos mais soltos, alegres, com a felicidade ensaiando chegar ao alcance das mãos. Não se falava em outra coisa que não fosse da revolução perdida para uns, ou adiada para outros, da abertura política em andamento, e da volta iminente ao Brasil.
Embriagados por essa ideia, num finalzinho de tarde de janeiro de 1979, eu e Janete, conversávamos sentados na sacada de nosso apartamento da Av. Friedrich Engels, que além de nós franquear a brisa suave da baía de Maputo, permitia-nos acompanhar no horizonte o sol mergulhar de cabeça nas águas do Índico, esse oceano que muitos anos depois, março de 2019, cansado do descaso com ele e a natureza, rebela-se. Suas águas, empurradas por um ciclone, invadem a região central de Moçambique causando uma catástrofe ambiental sem precedentes com centenas de mortos e milhões de desabrigados.
Mas nesse dia o tema era o de sempre, nossa volta ao Brasil. A conversa se estendia, só não foi mais longe por que nossas crianças, Artionka, Camilo e Luciana, chegaram pedindo comida. Janete aproveitou para lhes dizer que em breve voltaríamos ao Brasil. Entreolharam-se, mas como? Não foi lá que maltrataram vocês? Sim, mas é o nosso país, a situação política está mudando, agora podemos voltar. Vocês vão finalmente conhecer seus avós, tias, tios, primos e primas que vivem em Macapá, nossa cidade, onde crescemos, frequentamos as mesmas escolas, namoramos e casamos. Nesse dia, revelamos a eles que havíamos decidido antecipar nossa volta ao Brasil, que faríamos por etapa, inicialmente, aproveitando as férias escolares, Janete viajaria com eles no final do mês para uma temporada de três semanas em Macapá. Ouviram calados, compreendemos que o silêncio deles significava aprovação, foi como se já esperassem a chegada desse dia. Finalmente, eles iriam conhecer esse ponto distante na Amazônia sobre o qual não parávamos de lhes falar, tanto que eles achavam que Macapá deveria ser um lugar alegre e festivo, onde todo mundo vivia cantando e dançando numa permanente ciranda da felicidade. Também, vez por outra, eles ouviam histórias de uns homens maus que por lá habitavam.
Naquele final de 1978, impacientes, muitos exilados se anteciparam à Lei da Anistia, retornando ao Brasil para passar o Natal com a família, o que alimentava nossa esperança de que logo seríamos nós a tomar o rumo de casa. De longe, acompanhávamos a recepção da ditadura aos que desembarcavam nos aeroportos das grandes cidades, como Rio e São Paulo. Alguns foram presos na chegada, no entanto a maioria passou incólume, quer dizer, nem tanto, todos foram obrigados a responder extensos questionários e intimados a informar semanalmente seus endereços à policia.
O desejo era incontido, mas a decisão não era simples, saber quem podia e quem não podia voltar alimentou dúvidas e temores entre os exilados. No meu caso, era prudente aguardar a promulgação da Lei de Anistia, no entanto em relação a Janete não havia qualquer pendência judicial, nem mesmo inquérito policial, informação que nos chegou através de nossos advogados, o que selou nossa decisão. Ela iria na frente com as crianças preparar nosso retorno definitivo.
Os dias se tornaram curtos para os preparativos. Pensar nos presentes, arrumar malas, colocar em ordem os documentos. Para Janete viajar com as crianças era exigida a apresentação de nossa certidão de casamento, o que não tínhamos, mas já havíamos pedido a minha irmã Raquel que fosse ao Cartório Jucá, em Macapá, retirar uma cópia. Para nossa agonia ela nos escreveu relatando que o casamento católico com efeito civil, celebrado na Igreja Jesus de Nazaré, em 1969, não fora encaminhado ao cartório, portanto, legalmente não éramos casados. No dia seguinte, munidos de nossos passaportes, recém expedidos pela embaixada do Brasil em Maputo, acompanhados das amigas Célia e Eunice como testemunhas, batemos na porta da Embaixada, cujo embaixador Italo Zappa, muito solícito, determinou a um oficial de chancelaria que realizasse nosso casamento.
Uma semana depois, Janete e as crianças partiram de Maputo com destino ao Rio de Janeiro. No desembarque no aeroporto do Galeão, ainda na porta do avião, Janete e as crianças, foram separadas dos demais passageiros. Os quatro foram sequestrados e conduzidos à sede da Polícia Federal, na Praça Mauá, onde depois de submetida a um interminável interrogatório, passou a noite em claro. Ela e as crianças foram obrigadas a pernoitar numa cela escura e mal cheirosa, com decoração de sala de tortura. As crianças estavam atônitas, não conseguiam entender o que estava acontecendo. Sem qualquer explicação e sem que ninguém soubesse, no dia seguinte, eles foram embarcados em um voo para Brasília, onde, uma vez mais, Janete foi interrogada, sendo que dessa vez o policial truculento do Dops lhe fazia perguntas com uma arma na mão.
Tempos sombrios de um Estado repressor, que acreditávamos estar definitivamente legado ao passado. Não imaginava, nem nos meus sonhos mais loucos, que viveria para ver um presidente da República, eleito pelo voto popular, homenagear os insanos que no passado esmagaram a democracia. É inconcebível que alguém, no exercício da presidência da República, permita que se ponha em dúvida o crime hediondo que a ditadura civil-militar de 1964 representa. Pessoas foram presas, torturadas, mortas com requintes de crueldade e desaparecidas. O revisionismo histórico, que não se sustenta em nenhuma evidência, apenas na própria ideologia de Jair Bolsonaro, é uma ofensa à história do país, às vitimas da barbárie e ao Estado Democrático de Direito. O passado é um exemplo do que não fazer. Não podemos permitir nenhum retrocesso: ditadura nunca mais!
Autor: João Alberto Capiberibe, ex-senador (PSB-AP), ex-preso político e exilado na ditadura