As esquerdas abandonaram o debate sobre a Reforma Urbana há tempo demais e agora enfrentam o desafio de retomá-lo com urgência. A avaliação foi feita pelo líder do Movimento de Moradia do Centro (MMC) e Central de Movimentos Populares (CMP), ambos de São Paulo, Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, em palestra no segundo debate das Oficinas Diálogos do Desenvolvimento Brasileiro. O evento foi realizado pela Fundação João Mangabeira (FJM) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB) na última sexta-feira (30), em Brasília.
Gegê foi um dos convidados a debater o tema Reforma Urbana com lideranças políticas, representantes dos segmentos sociais e militantes do PSB. Segundo ele, os partidos e demais organizações de esquerda começaram, a partir das manifestações populares de junho, a perceber o custo de terem priorizado a disputa eleitoral/eleitoreira ao invés de seus princípios e ideais históricos. “Estamos chamando alguns partidos e segmentos para conversar depois disso e a grande questão a enfrentar é: foi o gigante que acordou ou a burguesia que está se apropriando desse espaço que era da esquerda?”, questionou, destacando os ataques violentos que ele e companheiros sofreram na Avenida Paulista durante as manifestações. “Nem na repressão da ditadura vi coisa igual, eram grupos de fascistas, que atacavam armados e encapuzados”.
Para o líder dos sem teto, a esquerda precisa encontrar novas formas de reocupar esse espaço, porque a Reforma Urbana não é uma luta individual, solta, mas do coletivo. “Ou trabalhamos juntos, e para concretizar um conjunto de reformas que se complementam – alem da Urbana, também as reformas Agrária e Judiciária, por exemplo -, ou não vamos fazer mudança nenhuma nesse país”, alertou.
Destacando que há décadas vivencia o dia-a-dia das organizações urbanas, estando, portanto, na linha de frente dessa questão, Gegê denunciou que nos últimos anos o Poder Judiciário tem sido um dos principais entraves para as ações dos movimentos. “Junto das Prefeituras e seus órgãos, eles passaram a usar de todas as forças e artifícios para tornar ilegais as invasões de prédios abandonados”, revelou. Segundo ele, esse embate de forças desiguais tem um propósito quase explícito que é “limpar” o centro das grandes cidades, removendo os pobres para a periferia. “Além do enorme poder e pressão do mercado imobiliário atual, Prefeituras e Judiciário também querem cidades limpas e bonitas para a Copa do Mundo 2014 e a Fifa”, acusou, denunciando, ainda, que para a construção do Estádio do Itaqueirão, em São Paulo, e de três novas avenidas que darão acesso a ele, a Prefeitura está desalojando milhares de pessoas de três das maiores favelas da cidade.
Para o militante, esse cenário de grandes eventos internacionais que o Brasil começa a sediar – além da Copa 2014, já teve a Copa das Confederações e a Jornada Mundial da Juventude em 2103 e, em 2016, ainda haverá as Olimpíadas – torna o debate sobre a Reforma Urbana ainda mais urgente. “A reforma de nossas cidades não pode se limitar à mera construção de novas casas, como defendem muitos governos”, alertou. “Ela tem que ser transformadora e realmente melhorar a vida das pessoas, garantindo mais dignidade a todos, sem distinção de classe. Ou nós reconstruímos as nossas cidades – e isso implica necessariamente a participação da sociedade organizada – ou a miséria vai aumentar de tal forma que a situação ficará incontrolável”.
Observatório das Metrópoles – Também para o professor Luiz Cesar Queiroz Ribeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR-UFRJ) e um dos coordenadores do Observatório das Metrópoles, esse momento pós-manifestações de junho é uma grande oportunidade para o tema Reforma Urbana ganhar mais visibilidade na agenda pública. Segundo ele, as cidades brasileiras estão vivendo neste momento um dilema entre o crescimento urbano e o bem estar social. “Estamos nos confrontando de maneira direta com o mal estar de nossas grandes cidades, é um momento de inflexão que ainda não está consolidado. Podemos repetir o velho modelo de crescimento sem inclusão ou evoluir para um estado do bem estar”, apontou.
Ribeiro explicou que as grandes metrópoles, por exercerem função de comando, direção e ordenamento da economia de suas regiões, exigem dinâmicas e políticas de gestão bastante diferenciadas. “A grande dificuldade é conseguir construir isso em escala metropolitana, por isso é preciso criar instituições com real poder político e legal para enfrentar as demandas desses aglomerados. Porque, nesse contexto, Reforma Urbana local nunca será uma Reforma Urbana de verdade”, resumiu. Esse tipo de governança, defende Luiz César Ribeiro, exige a construção de uma autoridade pública legítima para a região metropolitana.
Para isso, entretanto, será preciso antes desatar o nó urbano atual – um conglomerado de trabalhadores e intelectuais que serviram de exército de reserva para sustentar o capitalismo brasileiro e sua expansão. “Foram 35 milhões de pessoas que saíram do campo para as cidades com essa função nós últimos 30 anos, é muita coisa”, avaliou. Nesse processo foi que se formou a acumulação urbana patrimonialista, com empreiteiras, empresas de transporte, de coleta de lixo e outros serviços públicos amealhando enormes fortunas e poder – os “patrões invisíveis”.
“Essas forças estão encasteladas nos governos locais e têm real influência nas ações desses governos, assim, eles terem se omitido de fazer planejamento urbano e deixado as cidades livres para a expansão do capitalismo faz parte da lógica do processo capitalista”, argumentou o professor. De acordo com ele, a primeira questão agora para se iniciar uma verdadeira Reforma Urbana é desatar esse nó. “Sem uma estratégia firme para desalojar esses patrões invisíveis do poder, vamos ficar enxugando gelo”, advertiu.
Desfeito o tal nó górdio, o segundo grande desafio para a Reforma Urbana é a construção da autoridade pública sobre esses territórios – as grandes metrópoles e suas regiões adjacentes. Uma autoridade que tenha representação e legitimidade regionais, além de conhecimento da situação local e das políticas setoriais que a influenciam.
“É um desafio imenso, pois o Brasil já tem 13 cidades com mais de 1 milhão de habitantes – cenário que só a China, Índia e Indonésia alcançaram. Além disso, temos 52 regiões metropolitanas já formadas, embora ninguém saiba como se organizaram nem de que forma estão sendo geridas; 01 região-cidade em formação ao redor de São Paulo, abrangendo ao menos 25 milhões de habitantes; e, ainda, a possibilidade da constituição de 01 megalópole unindo São Paulo e Rio de Janeiro numa região só”, revelou Luiz César Ribeiro.
Portanto, defende ele, a autoridade pública que se irá criar para gerir tudo isso precisa ser desenhada de acordo com a diversidade e complexidade do fenômeno metropolitano brasileiro. “Para isso, será preciso romper com o conceito de isonomia do município, pois o referencial aqui é outro”, apontou. “Em função de tudo isso, será essencial a legitimidade social dos que irão compor essa autoridade pública. O que significa ter identidade sobre o território a ser gerido e solidariedade interna para enfrentar as extremas desigualdades internas desses aglomerados”.
De acordo com o professor, um dos principais entraves para isso é o desinteresse dos governos estaduais em criar autoridades públicas reais para as regiões metropolitanas, e não apenas factóides, como vemos até o momento. “A dificuldade, em última instância, está em repartir poder, porque há uma grande competição entre estados e municípios, entre núcleo e periferia”, afirma. “Ao mesmo tempo, é cada vez mais vital a representação da metrópole no nosso sistema político, para pensar o bem público no seu sentido exato – aquele que beneficia a todos sem beneficiar alguém em particular”.
Um federalismo para as regiões metropolitanas – Coube ao professor Sergio de Azevedo, da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a palestra final do evento, na qual abordou um tema de grande interesse do PSB – o Federalismo brasileiro e as regiões metropolitanas. Ele começou por diferenciar o nosso federalismo do praticado nos Estados Unidos, onde se originou o sistema. “O federalismo brasileiro é muito simétrico, baseado na centralidade total da União sobre os estados; o norte-americano, ao contrário, é visto como uma descentralização do poder para os federados”, comparou.
Segundo Sérgio de Azevedo, a questão envolve governança e governabilidade ao mesmo tempo – a governabilidade estando ligada aos grandes instrumentos de poder existentes, como as leis e normas de amplo alcance, e a governança vinculada às condições sistêmicas sobre as quais se dá o exercício desse poder. E abrange também, acrescenta, a grande diferença que existe entre a agenda governamental e a agenda decisional. “Ou seja, a questão metropolitana é viável do ponto de vista da criação de uma autoridade pública específica, porém, está na agenda do Governo mas não é prioridade dentre as suas decisões”, explicou. “É preciso transformar a questão em um problema, e um problema grave, para que o Governo ou um grupo do poder decida enfrentá-la”.
Sérgio Azevedo lembra que, de 1973 a 1988, havia um formato padrão institucionalizado para as regiões metropolitanas no Brasil, com leis, financiamentos, agências de fomento e recursos federais. Inclusive políticas regulatórias. “Entretanto, na Constituição de 1988 a questão metropolitana foi uma Não Questão, porque tratada como herança do governo militar e da ditadura, ninguém se interessou”, lamentou. “Dessa forma, os constituintes decidiram delegar o problema aos estados, surgindo daí o Neolocalismo, como chamo a retórica municipal exacerbada”.
De acordo com ele, nesse novo formato de federalismo há ausência de políticas regulatórias consistentes e também de linhas permanentes de financiamento federais. “Os municípios saíram com muita força da Constituinte, tanto que o Brasil é hoje o país em que eles são mais fortes”, avaliou o professor. Na situação atual, passados 25 anos da promulgação da Constituição, a prioridade é para temas setoriais que transcendam a esfera local.
Com o abandono oficial, as regiões metropolitanas acabaram desenvolvendo soluções próprias. Há uma combinação de diferentes formas de associações compulsórias com diversas modalidades voluntárias de cooperação metropolitana, ou seja, mais para parcerias entre municipalidades. Surgiram novos atores no processo (associações civis, ONG’s, iniciativa privada) e novos papéis passaram a ser desempenhados pelos atores clássicos (as prefeituras, governos estaduais e agências de fomento e financiamento internacionais). Ao mesmo tempo, surgiram redes nacionais informais de grupos e agências com vocação urbana.
O resultado disso, aponta Sérgio Azevedo, é a baixa centralidade política dessas regiões aliada a uma alta complexidade técnica dos problemas, além da ausência de proteção constitucional para que a questão metropolitana saia do papel e da falta de um arranjo institucional intra-governamental de cooperação federativa. “Ao mesmo tempo, elas precisam conviver com novos instrumentos de cooperação entre agências públicas, nos moldes, por exemplo, das Parcerias Público-Privadas”, destacou. “Ora, se temos mais de 50 regiões metropolitanas já formalizadas hoje no país é porque há um grande interesse e também ações concretas nesse sentido. As pessoas estão percebendo essa necessidade, falta agora o governo percebê-la e criar uma legislação específica”.