Cortes no orçamento da assistência social, omissão do Ministério da Cidadania, crise econômica e aumento do desemprego em decorrência da pandemia do coronavírus, um governo que prioriza armar o Ministério da Defesa e cortar recursos do social e de outras áreas essenciais. Esses são apenas alguns aspectos do governo de Jair Bolsonaro que aprofundam as desigualdades e a pobreza. E a área da assistência social é uma das mais afetadas pelo desmonte estatal.
Na última semana, após muitas críticas da oposição e da sociedade, o presidente da República descartou (pelo menos por enquanto) criar o Renda Brasil, programa desenvolvido pela sua equipe econômica chefiada pelo ministro Paulo Guedes para substituir o Bolsa Família quando o pagamento do auxílio emergencial aos mais afetados pela pandemia da Covid-19 encerrasse.
No dia 13 deste mês, o secretário Especial de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, disse que o governo estuda desvincular benefícios previdenciários, como aposentadorias e pensões, do salário mínimo. Isso os congelaria e os deixaria sem reajustes, abrindo caminho no Orçamento para financiar o Renda Brasil.
A União não conseguiu prever fontes de recursos para custear o novo programa sem furar o teto de gastos – emenda à constituição aprovada em 2016 que proíbe o governo de aumentar seus gastos além da inflação.
Entretanto, Bolsonaro autorizou o Congresso Nacional a criar um novo programa de concessão de benefício de assistência social pós-pandemia, que deve ser incluído no Orçamento de 2021. Até algumas semanas atrás, ele pensava em criar o próprio programa social, como uma marca, para pavimentar o caminho para a reeleição em 2022.
Só que mesmo sem a criação do Renda Brasil, o Bolsa Família, principal programa social do país, está em crise em função do limite de orçamento. Em 2019, cerca de 500 mil famílias estavam na fila de espera do programa.
Especialistas explicam que o Bolsa Família conseguiu amparar milhões de famílias de baixa renda nos últimos anos. Porém, precisa ser ampliado e modernizado, pois não é reajustado há anos e não tem orçamento para amparar todos os brasileiros que correm o risco de cair na linha da pobreza devido à crise econômica da Covid-19 e caso o governo não amplie a rede de proteção social.
O valor mensal pago às famílias de baixa renda também não é reajustado desde o governo de Michel Temer, em 2018. Atualmente, o benefício médio do programa é de R$ 190, o que não cobre nem metade da cesta básica — segundo a última Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), realizada em julho deste ano, quando o valor variava de R$ 392,75 a R$ 526,14 nas capitais brasileiras.
Levantamento realizado o ano passado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que os valores modestos impedem que o benefício seja mais eficaz no combate à pobreza. O estudo explica que esta é uma das razões pelas quais 64% dos beneficiados do Bolsa Família ainda não conseguiram sair da situação de extrema pobreza.
O auxílio emergencial já chegou a 67 milhões de brasileiros. Porém, só 15,2 milhões de famílias de baixa renda devem ser atendidas pelo Bolsa Família em 2021.
“Se tivéssemos uma recuperação econômica fenomenal, essas pessoas poderiam voltar ao mercado de trabalho, formal ou informal. Mas, como a perspectiva é de uma retomada lenta, muitos desses brasileiros não vão conseguir se inserir no mercado e podem entrar em uma situação de vulnerabilidade. O impacto social será enorme, com aumento da desigualdade, da fome, da violência, da crise”, alertou o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Joilson Cabral.
Diretor da FGV Social, Marcelo Neri, calcula que até 13 milhões de pessoas saíram da extrema pobreza devido ao auxílio emergencial e podem voltar a passar dificuldades caso nada seja feito após o benefício. E diz que a maior parte das famílias que perderam renda por conta da crise da covid-19 não está entre as 15,2 milhões de famílias que serão atendidas pelo Bolsa Família em 2021. É que esse número, previsto no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), representa a inclusão de 1 milhão de domicílios no Bolsa Família, que hoje atende 14,2 milhões de famílias. Ou seja, praticamente abrange apenas a lista de espera que já havia no benefício antes mesmo da crise do novo coronavírus.
“É a fila visível de pessoas que já estavam cadastradas e cumpriam as exigências do programa. Mas, também, existe uma fila invisível que começou a aparecer com o auxílio emergencial e muitas pessoas que deixaram de ter renda na pandemia”, alertou.
“Portaria do calote”
Na avaliação da presidente do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas), Andreia Lauande, o governo atual demonstra desconhecimento na área e descaso com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), composto por vários tipos de serviços.
“A criação do Renda Brasil é um soco no estômago da área social. Você destrói o maior programa de transferência de renda da América Latina, que é o Bolsa Família, tira a equipe técnica da formulação, que acontece fora do SUAS, sem entender as bases do programa e, agora, ainda joga a responsabilidade para o Congresso”, afirma.
Lauande, que também é secretária de Assistência Social de São Luís (MA), ainda ressalta que o desmonte ocorre desde o governo Temer e os recursos ordinários para as contas municipais na área estão atrasados.
Mas este ano a situação piorou com a portaria 2.362 do Ministério da Cidadania, assinada no fim de 2019, que permite à União pagar parcelas menores que o acordado no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).
A pandemia agravou a situação com o aumento da demanda na rede de assistência social. A União até liberou recursos extraordinários aos municípios, mas somente para uso exclusivo em ações relacionadas ao coronavírus.
No Brasil, o financiamento da assistência social é dividido entre a União, os estados e os municípios – e o dinheiro do governo federal chega aos gestores municipais por meio do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS).
A verba é usada no custeio de casas de acolhimento para crianças em situação de risco ou para mulheres vítimas de violência, de albergues para a população de rua, entre outros atendimentos.
Para 2020, o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou um orçamento de cerca de R$ 2,7 bilhões para 2020. Mas a Lei Orçamentária deste ano destinava apenas R$ 1,3 bilhão para transferências aos municípios.
“A portaria equalizou a distribuição dos recursos ao longo do ano. Isso significa distribuir apenas os R$ 1,3 bilhão do fundo por 12 meses”, explica Lauande.
Além de prever um corte de cerca de 40% no orçamento, os municípios ficaram seis meses sem receber a verba.
“Recebemos em janeiro 40% a menos do recurso ordinário, depois recebemos a parcela de fevereiro e, a partir de março, ficamos seis meses sem recursos. Em agosto, recebemos o repasse de março, com corte de 55%.”, complementa a secretária municipal.
Escolha política
A presidente do Congemas critica o caráter eleitoreiro na criação de um novo programa de transferência de renda pelo governo Bolsonaro e defende melhorias no Bolsa Família.
“O presidente quer um programa para chamar de seu. Mas poderia melhorar o Bolsa Família, porque ainda tem muita gente que precisa de fora. Dizem que zeraram a fila, mas alguns inscritos ainda aguardam para serem inseridos. Além disso, querem tirar recursos dos pobres para dar para os mais pobres”, diz.
Para ela, os cortes na assistência social, assim como na Educação e na Saúde, fazem parte de uma política de governo.
“Recomposição orçamentária é uma questão de escolhas do governo. No momento em que se escolhe armar o Ministério da Defesa e cortar recursos da Educação e do social, é uma escolha política”, diz ela.
A falta de um ministro da área, aponta Lauande, também é uma deficiência. Atualmente, o chefe do ministério da Cidadania é Onyx Lorenzoni, veterinário, sem nenhuma vivência na área. Antes dele, o ministro era o médico e deputado federal Osmar Terra (MDB-RS).
PSB defende plano emergencial
O deputado federal Danilo Cabral (PSB-PE), com o apoio de diversos parlamentares socialistas e de outros partidos, apresentou um projeto de lei que cria o Plano Emergencial para o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O objetivo é destinar R$ 4 bilhões, ainda este ano, para garantir o atendimento da população nos serviços de assistência social nos Estados e, principalmente, nos municípios.
“Todos os indicadores socioeconômicos sinalizam para um expressivo aumento da pobreza e da população em situação de vulnerabilidade social, a qual, necessariamente, deverá ser acolhida pelo SUAS. Por isso, devemos fortalecê-lo para garantir proteção social a essas pessoas”, afirma Cabral, que também é presidente da Frente Parlamentar em Defesa do SUAS.
Ele destaca que os 67 milhões de brasileiros que recebem o auxílio emergencial são potencialmente elegíveis para o atendimento da rede pública da assistência social.
“Há um déficit de mais de R$ 2 bilhões relativos aos exercícios anteriores, não repassados e reconhecidos pelo governo federal, embora tenham sido executados e inseridos nos planos de ação dos municípios, além de um déficit no orçamento de 2020 da ordem R$ 1,5 bilhão”, diz Cabral.
Para Lauande, o dinheiro apontado no PL 4.292/2020 vai suprir os restos a pagar e o saldo devedor de anos anteriores, mas não substitui os recursos ordinários.
Cabral acrescenta que o déficit prejudica o atendimento de mais de 25 milhões de usuários da assistência social.
“Apesar da escassez de recursos, as necessidades estão se ampliando de modo significativo, em decorrência do aprofundamento da desigualdade e da desproteção, da crise e da situação de emergência. A situação de pandemia tem impactado nos estados e, principalmente, nos municípios, demandando esforços nacionais na definição de recursos novos”, finaliza.
Com informações do Yahoo, Correio Braziliense, UOL, G1