A morte de George Floyd, um homem negro desarmado que foi asfixiado por um policial branco durante uma abordagem em Minneapolis, nos Estados Unidos, em 25 de maio, gerou uma onda de protestos contra o racismo e a violência policial em todo o mundo e no Brasil não foi diferente. Floyd foi imobilizado sobre o chão, teve o pescoço comprimido pelo joelho do policial Derek Chauvin por 8 minutos e 46 segundos e implorou “por favor, não consigo respirar”. Os apelos foram em vão.
No Brasil, o movimento negro também tem se manifestado para chamar atenção para a realidade de violência, descaso, mortes e racismo do país. Segundo dados mais recentes do Monitor da Violência, mantido pelo portal G1 em parceria com o Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o Brasil registrou 5.804 pessoas mortas por policiais em 2019. Por sua vez, 159 policiais morreram. O levantamento é baseado em informações coletadas junto a 25 estados e do Distrito Federal – só o Estado de Goiás não forneceu dados.
O Amapá possui a maior taxa: 15,1 mortos por policiais a cada 100 mil. Entretanto, o Rio de Janeiro se destaca em números absolutos: 1.810 mortes (31%) no total, incluindo as causadas por policiais em serviço (95% dos casos) ou à paisana. Esta é a cifra mais alta em duas décadas.
Mesmo nesses tempos de pandemia do novo coronavírus e com milhões de pessoas confinadas em casa, por recomendação das autoridades sanitárias, as mortes em operações policiais se agravaram no Brasil. Somente em março e abril de 2020, 290 pessoas morreram no Rio de Janeiro em contato com policiais. Esse número equivale a um terço dos mortos pela polícia norte-americana em todo o ano de 2019.
Essa estatística ainda não inclui o caso de maior repercussão deste ano. No dia 18 de maio, João Pedro Pinto, 14 anos, estava em casa brincando com um grupo de crianças quando policiais entraram atirando durante uma operação no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ), para prender um traficante de drogas. O adolescente foi atingido nas costas por um dos 70 disparos feitos pelos fuzis dos agentes. A morte de João Pedro causou manifestações no Rio e nas redes sociais sob o lema #VidasNegrasImportam.
Mas o fenômeno da brutalidade letal policial também ocorre em outros Estados. Em São Paulo, entre janeiro e março deste ano, foram registradas 255 mortes em confrontos com a polícia. Isso representa um aumento de 23% em relação ao ano anterior, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Estado.
Discurso de Bolsonaro gera impunidade
De acordo com especialistas em segurança pública, o discurso belicista do presidente Jair Bolsonaro de “caçar e punir os criminosos” e eximir os policiais de suas responsabilidades tem aumentado a impunidade. Bolsonaro proclama que a maneira mais eficaz de combater o crime é com violência.
É muito pouco provável que um policial seja denunciado no Brasil por abater um suspeito, muito menos julgado ou condenado. Nem um só agente do Rio foi levado à Justiça em 2019, segundo uma investigação da revista Época, que analisou os casos dos 195 mortos pela polícia em julho, o mês mais letal.
A revista revela que foram abertos 151 inquéritos, 11 casos foram arquivados, e não foram encontradas informações sobre outros 19. A reportagem descobriu que os boletins de ocorrência revelavam um padrão: incursões em favelas de patrulhas compostas por dois a seis policiais com fuzis para reprimir o tráfico de drogas; são atacados, respondem, fazem buscas no local, localizam a vítima e a levam ao hospital.
Ressalta ainda que em 60% dos casos os agentes não retornaram ao local dos fatos para investigar. A imensa maioria das vítimas da violência policial é formada por homens negros, pobres e moradores de favelas.
Perfil racial das vítimas
No Brasil, 75,4% das pessoas mortas pela polícia são negras, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019. Sendo que 55% da população do país é formada por negros (pretos e pardos).
Na busca de entender qual o perfil das vítimas da letalidade policial no Brasil, o Fórum investigou 7.952 registros de intervenções policiais terminados em morte, no período de 2017 e 2018. Para os pesquisadores responsáveis pelo levantamento, os números reforçam o racismo estrutural no país. “É impossível negar o viés racial da violência no Brasil, a face mais evidente do racismo”, analisaram.
Os dados indicam também que as vítimas de intervenções policiais são, na maioria das vezes, jovens. Enquanto pessoas com até 29 anos representam 54,8% das vítimas de homicídio no Brasil, esta faixa etária concentra 78,5% das vítimas de intervenções policiais que resultam em morte. Já entre a faixa etária de 20 e 24 anos, a porcentagem é de 33,6%.
“Todo negro de favela sentiu o impacto da violência. Quando você chega a uma certa idade, já conhece mais gente que morreu pela violência do que gente que entrou na universidade”, explica Arthur, de 22 anos, trabalhador da ONG Redes da Maré e morador da favela de mesmo nome. Onde vive é um dos bairros com frequentes tiroteios e operações policiais em que pouco importa que moradores morram no fogo cruzado ou o terror que causa às crianças em idade escolar e aos demais moradores. Enquanto dura a operação policial, todos ficam enclausurados.
Além da cor e da idade, a maioria das vítimas tem outra característica em comum: são pessoas pobres e com pouca escolaridade. Apenas 2,3% das vítimas tem Ensino Superior, enquanto 81,5% cursaram apenas o Fundamental e 16,2%, o Médio. Do total das mortes por intervenção policial, apenas 15,9% dos registros possuíam informações sobre a escolaridade das vítimas.
Racismo estrutural
O Brasil compartilha com os Estados Unidos uma história marcada pela escravidão. Cinco milhões dos 12,5 milhões de africanos trazidos à força para as Américas pelos europeus vieram para cá. Embora nunca tenha tido leis de segregação como os Estados Unidos, há no país um racismo estrutural que faz com que os negros sejam sistematicamente mais pobres e vivam menos.
Em artigo intitulado “I can’t breathe” publicado na Folha de S. Paulo no dia 1º de junho, a jornalista Cristina Serra destaca que nos anos 1960, nos Estados Unidos, o movimento pelos direitos civis e aplicação de ações afirmativas, como as políticas de cotas em universidades, alcançaram a população afrodescendente. Hoje, a população negra sabe cobrar os direitos que lhe são negados e, por isso, os protestos pela morte de George Floyd estão latentes.
“Aqui, muitos afirmam defender a igualdade entre brancos e negros, desde que estes continuem nas nossas cozinhas, recolhendo o nosso lixo, cuidando dos nossos filhos. Essa mesma gente ainda tem muita dificuldade de aceitá-los em lugares como as universidades”, afirma a jornalista.
“Escória maldita”
No Brasil, o presidente da Fundação Palmares, órgão responsável por guardar a história afro-brasileira, Sérgio Camargo, se referiu ao movimento negro como “escória maldita” e “vagabundos” em uma reunião privada em 30 de abril. Ele ainda criticou Zumbi dos Palmares, símbolo da luta anti-escravista que nomeia a instituição que ele chefia. “Não tenho que admirar Zumbi dos Palmares, que também era um fdp que escravizava pretos”, disse.
Em nota, Camargo disse estar “em sintonia com o governo federal, sob um novo modelo de comando, voltado para a população e não apenas para determinados grupos que, ao se autointitularem representantes de toda a população negra, histórica e deliberadamente se beneficiaram do dinheiro público”.
Escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro, Camargo quer trocar o nome da fundação e anunciou, semana passada, a criação de um selo “não racista”, reservado a quem, em suas palavras, seria injustamente tachado de discriminação racial no país. Além de negar reiteradamente a ocorrência de racismo estrutural no país, Camargo já defendeu o fim do feriado da Consciência Negra, a extinção do movimento negro e chegou a afirmar que a escravidão foi “benéfica para os descendentes” de escravizados no país.
Necessária desmilitarização
Uma das anomalias do sistema de segurança brasileiro, herança da ditadura civil-militar, é a militarização das forças policiais. E quem paga o preço por isso é a população mais vulnerável, moradores das periferias que, cotidianamente, tem seus direitos humanos violados por esses agentes.
Após o fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), no período posterior à promulgação da Constituição Federal de 1988, os militares se entranharam na área da segurança pública com o estabelecimento de uma polícia que fosse uma força auxiliar do Exército e a inclusão do artigo 142 no texto constitucional.
É ele que regula as operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que “concedem provisoriamente aos militares a faculdade de atuar com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade”, de acordo com o portal do Ministério da Defesa.
“O artigo 142 da Constituição diz expressamente que cabe às Forças Armadas intervir na ordem interna para a garantia dessa ordem interna, garantindo o funcionamento dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não são as Forças Armadas que têm que garantir o funcionamento dos poderes constituídos. Ao contrário: são os poderes constituídos que têm que garantir o controle das Forças Armadas!”, afirmou Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, durante Seminário dos Policiais Antifascismo em abril de 2018.
Segundo Zaccone, os policiais militares estão submetidos a condições de subcidadania. “Não podem se sindicalizar, não podem fazer greve, não têm direito à livre manifestação de pensamento, não podem ter filiação partidária. São subcidadãos”, afirmou.
Essas são algumas das razões pelas quais 73,7% dos praças (soldados, cabos, sargentos e subtenentes) são favoráveis à desmilitarização, como apontou pesquisa divulgada em 2014 pela Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), em parceria com a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), órgão do Ministério da Justiça.
Entretanto, por uma questão de manutenção de poder, há resistência entre os oficiais com relação a essa mudança.
O modelo atual de segurança pública é fracassado e ineficaz, baseado na lógica do confronto, da violência, sustentado pelo discurso da “guerra contra às drogas” e apoiado por uma parcela da sociedade e pela “Bancada da Bala” no Congresso Nacional.
As polícias militares são aquelas responsáveis por fazer o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, mas invariavelmente atuam de forma abusiva e violenta. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, cabem as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.
Mas é necessária que se faça a desmilitarização da PM, e isso não tem a ver com a sua extinção. É preciso que seja feita uma reforma das polícias militares dos Estados, que sempre foi adiada pelos governos. A proposta de desmilitarização consiste na mudança da Constituição, por meio de Emenda Constitucional, de forma que polícias Militar e Civil constituam um único grupo policial, e que todo ele tenha uma formação civil.
Uma das críticas feitas à militarização da polícia é o treinamento a que se submetem os policiais militares. O policial precisa ser defendido como um trabalhador garantidor dos direitos de todos os cidadãos e também um cidadão pleno de direitos, em vez de um violador, como frequentemente é tido na relação das forças policiais com a sociedade, principalmente com os mais pobres e moradores de periferias.
PSB defende a segurança pública e respeito aos direitos humanos
Em seu processo de autorreforma, o PSB destaca o tema da segurança pública como sendo importantíssimo para a sociedade brasileira. “Estamos em uma situação quase caótica, com uma violência urbana praticamente incontrolável. A questão das drogas tomou conta do país, sobretudo da juventude. Essa tragédia social nasce de vários fatores, sobretudo, das condições sociais da população”, afirma o documento.
Para o partido, um dos maiores desafios do Brasil é ter uma política de segurança pública que leve em consideração o respeito aos direitos humanos e aos cidadãos, vítimas da violência. A solução não está em uma política de segurança exclusivamente repressora, mas sim em uma política de desenvolvimento social que ofereça educação, saúde, cultura e lazer às crianças e jovens, evitando que a violência se reproduza.
O PSB ressalta que possui experiências positivas de gestões socialistas Brasil afora, como em Pernambuco e Espírito Santo. Mas defende que o país precisa de uma política nacional de desenvolvimento que possa reunir Estados, municípios, União e a sociedade em um projeto de combate à violência e de justiça social.
No texto da autorreforma, o partido afirma que não se resolve violência com mais violência. “Os que afirmam que bandido bom é bandido morto estão fazendo uso eleitoreiro de uma política de segurança pública, sem prover ou propor soluções para o problema”, diz.
“A política de segurança pública requer a implantação de um conjunto de iniciativas. […]Mas a questão da violência só pode ser resolvida a partir de um esforço dos três entes federativos, numa política unificada nacionalmente e debatida com a sociedade, para compreender as verdadeiras raízes do crime e da violência no país”.
Assessoria de Comunicação/PSB Nacional com informações do El País, Super Interessante, Folha de S. Paulo, EBC e outros portais de notícias