Diversos especialistas, instituições e organizações da sociedade civil apoiam a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, conhecida como “ADPF das Favelas”, que busca reduzir a letalidade policial e garantir o respeito aos direitos fundamentais de moradores das comunidades no Rio de Janeiro em operações policiais.
A ação, de autoria do Partido Socialista Brasileiro (PSB), foi motivada por uma série de operações policiais consideradas excessivamente violentas. Em 2019, ano em que o partido ajuizou a ADPF, 1.814 pessoas foram mortas em ações da polícia fluminense, quase o dobro de todas as vítimas letais da polícia dos Estados Unidos no mesmo período.
Até o momento, Edson Fachin foi o único ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) a votar e optou por manter as restrições às operações, como o uso obrigatório de câmeras corporais e regras específicas para a utilização de helicópteros. O julgamento será retomado na quinta-feira (3).
Desde que a ação foi apresentada, o STF fez diversas determinações em decisões liminares, inclusive para que o governo estadual elaborasse um plano para reduzir a letalidade policial. À época, a ONG Redes da Maré, participante direta da ADPF, enviou uma série de cartas de crianças e adolescentes da região expondo relatos sobre a violência nas comunidades. A partir do voto do relator, o Plenário vai decidir se homologa o plano ou se é necessário adotar outras medidas.
O procurador Renato Ramalho, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a ADPF das Favelas não busca restringir as operações policiais, mas sim estabelecer diretrizes claras que devem ser seguidas pelas forças de segurança. “É de se lamentar que seja necessário que nossa Suprema Corte seja acionada nesse caso e seja obrigada a dizer o óbvio: não se combate o crime por meio da prática de outros crimes”, afirmou. “Nem o autor da ação, o PSB, nem o relator, ministro Fachin, defendem qualquer abrandamento do combate ao crime organizado”, disse.
O ex-secretário nacional segurança pública, Luiz Eduardo Soares, afirma que a intenção da ADPF das Favelas não é paralisar a atuação das polícias, mas garantir que suas ações sejam fundamentadas nos princípios consagrados pela Constituição. “Parece absurdo ter de cobrar respeito à legalidade. Mais absurdo ainda é hostilizar esta solicitação, definindo-a como defesa da criminalidade”, destacou em seu artigo “Genocídio negro: o STF agirá?”.
Para o advogado e professor de direito internacional e direitos humanos da FGV, Thiago Amparo, a ADPF das Favelas, se bem implementada, promove o combate ao crime organizado. “Por um motivo simples, qual seja, uma polícia descontrolada como quer Cláudio Castro facilita o crime organizado, não o contrário”, defendeu. “A ADPF combate o crime organizado ao fortalecer a atuação do Ministério Público, ao exigir o afastamento de policiais corruptos, ao privilegiar investigação séria. Dinâmicas de expansão do crime devem ser lidas no contexto nacional e precedem a ADPF”, argumentou no artigo “A ADPF das Favelas combate o crime”, publicado no jornal Folha de S. Paulo.
Queda da letalidade policial
O argumento de que a “ADPF das Favelas” prejudica a ação policial é refutado por dados concretos. Em 2024, por exemplo, o número de mortes causadas pela polícia no Rio de Janeiro caiu de 1.814 para 699, uma redução de mais de 61%, conforme dados oficiais. Enquanto em outros estados do Brasil, como Bahia, São Paulo e Amapá, a letalidade policial tem aumentado, no Rio de Janeiro observa-se justamente o contrário, com uma diminuição das mortes decorrentes de intervenções policiais.
Essa redução nas mortes policiais não resultou em um aumento nos índices de criminalidade. Pelo contrário, entre 2019 e 2023, houve uma queda de 18,4% nos homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte. Além disso, os roubos de veículos caíram 44%, os roubos de rua diminuíram 57,2%, os roubos a transeuntes reduziram 60,9%, os roubos a coletivos tiveram uma queda de 64,3%, os roubos de celulares diminuíram 42,2% e os roubos de carga recuaram 56,8%.
Embora tenha ocorrido uma redução nas mortes resultantes de ações policiais, o Rio de Janeiro ainda apresenta uma taxa de letalidade de 5,4 por 100 mil habitantes, significativamente acima da média nacional, que é de 1,8 por 100 mil, de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Aumento das operações policiais
De acordo com o Boletim De Olho na ADPF 635, elaborado pela ONG Redes da Maré, no Conjunto de Favelas da Maré, houve um aumento no número de operações policiais. Após uma queda, com apenas sete operações registradas em 2021, o número dobrou para 14 em 2022, saltou para 34 no ano seguinte e chegou a 42 em 2024, a maior marca desde o início da série histórica da Redes da Maré, em 2016. Em 2024, o número de mortes decorrentes dessas operações chegou a 20. O relatório destaca que “o uso desproporcional da força letal continua sendo um problema estrutural”.
Segundo o diretor executivo do Instituto de Defesa da População Negra (IDPN), Joel Costa, o argumento de que as organizações criminosas se fortaleceram durante a ADPF não se sustenta. Para Costa, um dos principais fatores que fortalece o crime organizado é a colaboração de agentes do Estado no tráfico de armas. Essa facilitação por parte de representantes da segurança pública não apenas abastece os grupos criminosos com armamentos, mas também contribui para a expansão de seu poder, dificultando o controle e a manutenção da ordem.
Universidades e Fiocruz apoiam ADPF das favelas
Movimentos da sociedade civil e 37 instituições, incluindo a Fiocruz e as reitorias da UFRJ, UFF e UERJ, entregaram uma carta ao Supremo Tribunal Federal (STF) em apoio à ADPF das Favelas. O documento argumenta que a ação representa uma oportunidade para fortalecer a participação popular e corrigir abusos policiais, como o uso excessivo da força contra populações pobres e negras, sem comprometer a atuação legítima das forças de segurança.